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Otakismo – Dance enquanto a música estiver tocando… (Haruki Murakami)

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Novo espaço. Novo público. Nova abordagem. A estreia do Otakismo no Chuva de Nanquim.

“Acordo. Onde estou? Reflito. Não só reflito como também me questiono: – Onde estou? – No entanto, esta pergunta não tem nenhum sentido, pois sei exatamente qual é a resposta. [...] Às vezes uma mulher está dormindo do meu lado, mas normalmente estou só. [...] Elas vêm a mim, relacionam-se comigo e um dia vão embora. Elas se tornam amigas, namoradas, esposas. Em certas ocasiões tornam-se minhas oponentes. De qualquer forma, todas acabam se afastando de mim. Algumas desistem, outras se decepcionam, outras silenciam e acabam indo embora. [....] O pior de tudo era constatar que elas saíam do meu quarto mais tristes do que quando entravam.” (Dance, Dance, Dance)

Dance, Dance, Dance – Haruki Murakami

 Haruki Murakami é um escritor natural de Kyoto, geralmente tomado como o provável futuro japonês a ser recompensado com um Prêmio Nobel da Literatura. É sem sombra de dúvidas o mais famoso e influente escritor da atualidade no arquipélago, de longe o mais lido e apreciado pela juventude japonesa. Não é por menos. Sua escrita ágil, pop e folhetinesca toca o coração de adolescentes e jovens adultos que não olham mais para o Japão com o mesmo otimismo e orgulho com o qual olharam seus pais e avós em tempos passados. A obra que escolhi comentar é a que, talvez, melhor captou o sentimento da juventude japonesa dos anos 80. Trocando em miúdos, uma geração tão eufórica quanto desorientada. O nome desse livro agridoce é Dance, Dance, Dance (1988); publicado no Brasil com tradução direta do japonês pela Estação Liberdade, é facilmente encontrado em grandes livrarias.

Murakami não é, no entanto, uma unanimidade entre os japoneses. Seguidor do movimento pós-moderno no Japão, costurando sua narrativa com elementos da cultura pop como Dunkin’ Donuts e Michael Jackson, seus livros são muito atacados pelos críticos literários japoneses adeptos da tradição moderna do país (defensores de nomes como Natsume Soseki, Yasunari Kawabata e Ryunosuke Akutagawa).

Essa informação é interessante para nós na medida em que Murakami passa a subverter as normas literárias aceitas como ‘elevadas’, ‘de qualidade’ ou ‘intelectualizadas’ para falar a mesma língua da mocidade nipônica. Seu sucesso é plenamente justificado – e os seus livros são best sellers, vendem aos milhões – justamente porque, assim como a literatura tradicional não estaria mais dando conta de narrar a realidade mutante, talvez o Japão dos anos 80 para cá não consiga mais apresentar respostas para os anseios dos jovens; o preço pelo indiscutível progresso técnico e material conquistado pelo Japão após a Segunda Guerra mundial está tão salgado que, aparentemente, poucos ainda fazem questão de bancá-lo. Sim, os textos de Murakami sempre apresentam protagonistas angustiados, solitários, tentando manter a cabeça fora da areia movediça em suas jornadas. Além, é claro, de conviverem com outros que não tiveram a mesma sorte e, apesar de nascidos para brilhar, foram drenados pelo lodaçal.

“Sem exagero, posso dizer que metade dos textos que tive de escrever era totalmente fútil, material sem utilidade. Um desperdício de papel e tinta. Evitei parar para refletir sobre isso e fui apenas arrematando trabalhos mecanicamente. [...] Não tinha nenhuma ambição nem esperança. Apenas ia arrematando sistematicamente, de ponta a ponta, tudo o que aparecia. Para ser franco, até cheguei a pensar se isso não seria uma vida desperdiçada. Mas, se até mesmo o papel e a tinta podem ser desperdiçados, não havia razão para que eu ficasse me lamentando. Essa foi a conclusão a que cheguei. Nós vivemos numa sociedade altamente capitalista. Nela, o desperdício é a maior das virtudes. Os políticos chamam isso de requinte da demanda doméstica. Eu chamo de desperdício sem sentido. São divergências de pensamento. Apesar delas, a nossa realidade é indiscutivelmente assim. Os incomodados que se retirem para Bangladesh ou para o Sudão.” 

Espere um minuto – você intervém -, um sentimento generalizado de desamparo fez sucesso no Japão? Então a segunda economia do mundo, um bolsão de prosperidade, segurança pública e respeito social? Exato. E é justamente nesse ambiente que um pessimismo e um mal estar existencial poderiam florescer com mais intensidade. Se você quer entender a razão dessa situação aparentemente contraditória, me acompanhe nesse texto! Murakami é um bom anfitrião ao dar voz aos tímidos japoneses que sucederam os ‘samurais corporativos’ do Milagre Japonês a partir dos anos 80.

O livro

“Não fiz quase nada. Não criei nada. Amei alguém e fui amado. Mas hoje não resta mais nada. A minha vida é estranhamente linear e seu quadro, totalmente monótono. Parece até que estou andando dentro de um videogame. Eu sou o PacMan. Vou apenas comendo os pontinhos pelo labirinto, sem nenhum objetivo. E, com certeza, um dia vou morrer.”

A glacial Sapporo, o ensolarado Havaí e a desumanizada Tóquio são os três cenários onde se desenvolve esse romance. O protagonista, segundo as palavras de Lúcia Nagib, é um “Dissidente silencioso de uma sociedade altamente organizada, onde se recusa a participar do sistema de ensino e trabalho, sua vida é um vagar sem rumo ao embalo da música pop americana e inglesa que não dá espaço à tradição cultural local”.

Nomes do jazz e ícones pop da época (como Genesis, David Bowie e Duran Duran), junto com redes de fast food e marcas de automóveis, são o pano de fundo de sua jornada – muitas vezes onírica – em busca de um sentido para sua vida. Um escritor freela de matérias jornalísticas tapa-buracos resolve passar a régua em sua vida solitária e sem propósito na capital japonesa, e pega o avião para o gélido inverno de Hokkaido. Lá, pretende passar um tempo no hotel decadente no qual se hospedou com a ex-namorada, que, como todas as outras, saiu da sua vida para nunca mais voltar. 

“Por favor, não me deixe mais tempo aqui sozinho…, fiz mentalmente esse pedido. Eu preciso de você. Não quero mais ficar só. Sem você, sinto que sou expelido para os confins do universo por uma força centrífuga. Por favor, apareça e prenda-me em algum lugar. Quero que você me prenda neste mundo real. Não quero fazer parte do clube dos fantasmas. Sou apenas um homem extremamente comum e simples de trinta e quatro anos.”

 

O hotel será o ponto de partida físico da sua procura pelas coisas que foram caindo do seu bolso enquanto vagava por aí, assoviando sem perceber. A partir de lá, encontrará uma série de personagens exóticas, cada uma com sua própria dor, sua própria história; e como um Hamlet pós-moderno, recheará os diálogos com reflexões sobre os mais diversos assuntos. Dos mais complexos, como o amor, a morte e as ideologias, aos mais banais como a cultura pop e a culinária. Nesse meio tempo, o mundo real dilui aos poucos as barreiras com o universo onírico, ao ponto de ficar difícil distinguir onde, de fato, as personagens estão com a cabeça.

“Que absurdo! Perdi a autoconfiança. Será que irei apodrecer, falando sozinho, dessa forma, nesse lugar que parece um cemitério de elefantes da sociedade altamente capitalista?

O Japão oitentista de Murakami 

“Como não fazia havia tempos, liguei o rádio e segui para o oeste ouvindo rock. A maioria das músicas era sem graça. Fleetwood Mac, Abba, Melissa Manchester, Bee Gees, KC & Sunshine Band, Donna Summer, Eagles, Boston, Commodores, John Denver, Chicago, Kenny Rogers… Essas músicas apareciam e desapareciam como bolhas de espuma na água. Que droga! Um lixo de música de consumo para arrancar o dinheiro da garotada, pensei. De repente bateu uma melancolia. Os tempos mudaram. Era só isso.”

O Império Japonês derrotado na Segunda Guerra pelas tropas norte-americanas deu espaço para um governo parlamentar pacifista e progressista. Com auxílio do capital americano, o Japão rapidamente se reconstruiu e orientou sua economia industrial para as exportações. Nas décadas de 60 e 70 o país entrou no processo chamado de “Milagre Japonês” com uma economia em plena ascensão (as Olimpíadas de Tóquio em 64 foi, grosso modo, o que Rio 2016 será para nós). Os anos 80 foram o auge absoluto desse processo. Economistas diziam que a superação da economia americana pela japonesa não era mais discutida em termos de ‘se’ (no sentido de possibilidade), mas sim em termos de ‘quando’. Sony, Toyota e Nintendo invadiram o mundo. O país concentrava riqueza e a distribuía de modo igualitário. Após muito sofrimento, finalmente chegara a hora da bonança.

O Japão tinha se tornado o exemplo maior do sucesso capitalista e posou como modelo ao mundo, de como um país sem recursos poderia construir seu próprio caminho de sucesso com muito trabalho árduo. No entanto, as coisas não eram tão simples e maravilhosas assim, conforme denunciaram os jovens japoneses dessa época, aqueles que nunca passaram pelas privações da guerra e da reconstrução do país.

“As pessoas reverenciam a dinâmica que o capital possui. Idolatram seu caráter mitológico. Adoravam o preço do terreno em Tóquio e o que simboliza o Porsche que brilha reluzente. Pois, além dessas coisas, neste mundo já não resta mitologia nenhuma. (…) Neste mundo, a filosofia vai se assemelhando a uma teoria econômico-administrativa.”

As jornadas de trabalho eram desumanas (resultando em inúmeras mortes por excesso de trabalho e fragmentação do núcleo familiar); o clima de competição instaurado tornou a atmosfera escolar rarefeita demais (e disso ganhou força o ijime [bullying] e o alarmante índice de suicídios infanto-juvenis); as corporações japonesas sustentavam seu crescimento com ampla degradação dos recursos naturais, entre outros fatores. O clima geral, claro, era de otimismo bobo e consumismo desenfreado, mas parte dos estudantes japoneses passou a olhar para esse Japão quase irreconhecível, responsável por exigir demais de todos os cidadãos, e a se questionar: O que estamos fazendo? Estamos realmente trilhando um caminho saudável?

Falamos de um Japão apartado de suas raízes religiosas e morais, tendo como única referência o “Deus Mercado Livre” e a “Princesa Economia”. País maduro até demais, já começava a apresentar os primeiros pontos de bolor. Prometeram-lhes a felicidade com o desenvolvimento econômico. Eles correram atrás e se tornaram mais ricos do que qualquer um poderia supor, para, enfim, perceber que felicidade não é algo assim tão fácil de ser encontrado coletivamente. Pior, toda essa riqueza estava cobrando um preço indignante. Se a economia era a única referência reforçada pela sociedade, se eles já tinham alcançado o topo do mundo nesse sentido, e ainda assim continuavam incomodados, em qual direção correr? Sem dúvidas os índices sociais do Japão davam inveja a quase todos, mas não pensem que é fácil dar sentido à uma vida momentaneamente sem objetivos claros. No caso japonês, a crise de perspectiva é ainda mais grave por questões naturais. Eles têm consciência da destruição de tudo o que foi erigido suando sangue. O Grande terremoto de Tóquio é um fato, hoje ele é esperado a qualquer momento.

“Expliquei-lhe que o desperdício era uma grande virtude das sociedades altamente capitalistas. O Japão, ao adquirir os Phantoms dos Estados Unidos com misturadores nada econômicos, movimentava um volume maior no comércio de combustíveis, e esse adicional repercutiria na economia global, que consequentemente alimentaria cada vez mais o capitalismo global. Se todas as pessoas, de uma só vez, deixassem de desperdiçar, ocorreria um colapso geral e a economia global se desestruturaria [...] ele admitiu que eu poderia estar com a razão. E continuou dizendo que tinha muita dificuldade em entender essa nova estrutura social capitalista por ser de uma geração que sofreu muitas privações materiais na infância durante a guerra.” 

Esse é o Japão que serve de cenário para Dance, Dance, Dance. Jovens apáticos e indiferentes ouvindo Phil Collins e comendo frango frito no KFC; freelancer sem perspectiva de futuro entregando trabalhos descartáveis para sobreviver, funcionárias neuróticas, abandono familiar, entre outros.

As relações entre a juventude japonesa oitentista e o discurso da pós-modernidade

“Deitado na minha cama, odiei o mundo. Odiei mesmo, profunda e intensamente. O mundo estava repleto de mortes sem graça e ilógicas. Eu era impotente e estava atolado na sujeira desse mundo-cão. As pessoas chegavam pela porta de entrada e partiam pela porta de saída. As que saíam jamais retornavam. O que mais estou para perder? Como você disse, talvez eu não possa mais ser feliz. Isso não importa, mas essa situação é terrível demais.”

Além do contexto específico da realidade japonesa, das inseguranças típicas da idade e inerentes da condição humana, Murakami produz uma obra global, bastante antenada com a situação do mundo àquela época. Você já deve ter ouvido o termo ‘pós-modernidade’. Entendê-lo é essencial para sentir a textura que se esconde por trás dos textos pop do japonês. Não se preocupe, não ficarei com intelectualismos, mas tentarei fazê-los entender essa atmosfera pessimista e imediatista que varre o mundo desde os anos 80 sob essa ótica.

A consciência pós-moderna é o reconhecimento de um fracasso. Qual? A derrocada da Modernidade, que fracassou nas utopias que nos prometeram. Pessoas com essa ‘consciência’ estariam despertando de um sonho em tons pastéis para um pesadelo cinzento; perceberam que todas as flores são, na verdade, de plástico e que o perfume é sintético. Calma, eu explico melhor.

A Modernidade é o nome dado para algo que se iniciou na Europa por volta de 1500, quando o homem foi colocado no centro do mundo (antropocentrismo do Renascimento); os rumos do planeta foram colocados nas mãos da racionalidade, ou melhor, da ciência (a partir do cogito cartesiano); e as religiões pouco a pouco ganharam status de superstição barata. Os Estados nacionais seriam os responsáveis por produzir segurança no mundo, na condição de produtor de justiça social e esforços para melhorar a qualidade de vida (esse discurso em tempos de guerras consecutivas e fome é muito atraente). Em conclusão, a Modernidade tinha um objetivo futuro , uma linha de chegada para um lugar onde permanecer, enfim, a promessa de um mundo melhor.

“-Você gosta do Dalai Lama?

-O que é isso?

- É o monge mais importante do Tibete.

- Nunca ouvi falar.”

O Japão seguiu essa cartilha com afinco a partir do século XIX, durante o processo de ocidentalização. Justamente na época em que intelectuais europeus, como Nietzsche e Freud, começaram a levantar a hipótese de que a Modernidade trouxe tantos problemas na bagagem, que talvez seja melhor que fosse substituída.

É esse ‘projeto racionalista’ que alçou o Japão ao topo do mundo, é isso que fez a Toyota engolir a General Motors e dominar o mercado americano. Dedicação absoluta ao trabalho. Mas isso trouxe segurança no mundo apenas em partes. É verdade que não havia mais guerras ou fome. Por outro lado, as pessoas foram aceleradas ao ritmo das máquinas que operavam. Horas extras intermináveis marcam o mundo empresarial japonês. Tudo precedido por inacabáveis horas de estudo para entrar nos melhores colégios, que determinavam quem ia para as melhores universidades, que por sua vez, decidiam os poucos aptos a uma vaga numa grande corporação. Estavam todos correndo, mas não ao local prometido pelo projeto moderno, corriam a esmo. E ao correr para colocar Walkman nas mãos de todos os adolescentes do mundo que podiam pagar por um, os japoneses esqueceram-se dos seus próprios filhos.

A perspectiva pós-moderna é aquela que não acredita mais em noções de progresso, mundo melhor, linha de chegada. Na verdade, pós-moderno é aquele que não consegue acreditar em nada. Ele vê o mundo como um palco em branco.  Não há aonde chegar, não há direção correta, qualquer direção vai dar em algum lugar que não é melhor do que os outros possíveis. Quando se acredita nisso, fica complicado traçar planos para o futuro [“Não tinha nenhuma ambição nem esperança”], trabalhar por um amanhã [“fui apenas arrematando trabalhos mecanicamente”], não? Isso fica claro em vários trechos de Dance, Dance, Dance (eu poderia citar outros tantos):

“Eu estava bem no meio de um espaço em branco. Era um branco que preenchia todos os espaços e, por mais que caminhasse, essa brancura me acompanhava. Não chegava a conclusão nenhuma. [...] Eu estava sozinho e com medo. Sentia-me sozinho como se fosse uma criança perdida na floresta.” 

“Enquanto observo a chuva cair, reflito sobre o que é sentir-se fazendo parte de algo. Penso também no que é ter alguém chorando por mim. Tenho a sensação de que tudo isso faz parte de um mundo muito, mas muito distante.” 

“Durante algum tempo, senti um vazio sem fim. Eu, no final das contas, não ia a lugar algum. Todos é que iam partindo sucessivamente, e somente eu permanecia no estado de incubação.”

“Estou me perdendo e deixando-me perder. Estou confuso. Não estou ligado a lugar algum.”

“Por onde, afinal, devo começar? Não consigo alcançar nada. Estou totalmente perdido.”

“Como minha ex-mulher dizia, enquanto for capaz, só irei magoar mais e mais pessoas”

Os adolescentes japoneses dos anos 80 – confrontados com o distanciamento familiar, com as cobranças escolares asfixiantes, com a ausência de vida espiritual, em suma, com um futuro nada promissor em termos de ‘felicidade’ – foram o hardware perfeito para a instalação desse software mental na forma de um mal estar cínico. Não queriam sair de uma infância rica e mimada para a competição carnívora pelas melhores universidades, empresas e, por que não, parceiros afetivos (homens herbívoros mandam lembrança).

Amarrando esse raciocínio com o livro, Murakami nos mostra o que acontece quando toda uma geração, gozando de uma condição sócio-econômica privilegiada, se depara com a falta de perspectivas. Todas as principais ‘doenças sociais’ do país (karoshi, hikikomori, ijime, enjo kosai, otaku) nasceram ou foram intensificadas no auge da aceleração dessa dinâmica (anos 80) ou no estouro da bolha financeira e conseqüente recessão econômica (anos 90 e 2000), quando eles já eram um país próspero (nos termos da Modernidade). O clima do livro é pesado do início ao fim, Murakami não parece descartar a possibilidade de uma vida findada em tragédia, mas convoca o leitor, durante toda a jornada, a se manter de pé:

“Enquanto a música estiver tocando, você deve continuar a dançar. Entende o que quero dizer? DANÇAR, CONTINUAR DANÇANDO. Não deve pensar no motivo ou no sentido disso, pois eles praticamente não existem. Se ficar pensando nessas coisas, seu pé ficará imóvel. Uma vez parado, já não serei mais capaz de agir. VAI SE ACABAR PARA SEMPRE, ENTENDEU? Daí, só lhe restará viver unicamente neste mundo [da fantasia]. Cada vez mais será sugado por ele. Por isso, não deve parar de mover os pés. Por mais que lhe pareça uma tolice, não deve ligar. Deve continuar dançando, dando passos (…) Ainda deve haver algo que não esteja perdido. Use tudo o que puder usar. Dê o máximo de si. Não há o que temer. Você deve estar mesmo cansado. Cansado e com medo. Qualquer pessoa passa por esses momentos. Sente que tudo está errado. Por isso ficam inertes”

Daí o título Dance, Dance, Dance. Nomeando o livro com o clássico dos Beach Boys, Murakami – testemunha de inúmeras pessoas que estão paralisadas pelo medo de agir, ou então já estão desesperadamente em queda livre no abismo – relembra o projeto de homem desenhado por Nietzsche: Aquele que cai no abismo… dançando!

(Observação: Parafraseei e usei trechos literais da palestra “O Diagnóstico de Zygmunt Bauman para a pós-modernidade: uma agenda para o inverno” do filófoso Luiz Felipe Pondé, pois achei muito clara, didática e conceitualmente coerente.)

por Otakismo



Otakismo – Crianças Invisíveis: Para o que você tem olhos?

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Um curta metragem chinês é o protagonista dessa postagem.

Furei o cronograma. Estava construindo aos pouquinhos um texto sobre um filme japonês. Fui obrigado a passá-lo para trás. Por enquanto. Hoje não vim aqui ‘dar aula’, mas dialogar com pessoas. Não serei verborrágico. Até porque a obra que trago como recomendação imediata trata justamente da incapacidade das palavras darem conta de certos momentos, situações e emoções.

Song Song e Little Cat é um curta metragem dirigido pelo chinês John Woo e faz parte da coletânea responsável por reunir outros seis curtas sob o título guarda-chuva “Crianças Invisíveis”. Este projeto, financiado para benefício da UNICEF, teve como proposta dar liberdade criativa absoluta para sete diretores, de sete diferente países, expressarem uma visão particular a respeito da infância em seus países de origem. Mais precisamente das crianças invisíveis, aquelas que não sabemos (ou fingimos não saber) de sua existência, das quais desviamos nas ruas abarrotadas sem lhes dirigir nem mesmo um olhar.

A coletânea dá corpo a essas crianças translúcidas em diversas partes do mundo (EUA, China, Inglaterra, África do Sul, Sérvia, Itália e Brasil), e ao materializá-las, torna-as visíveis para o espectador que só consegue rachar o gelo da insensibilidade e do conformismo no conforto de uma sala de cinema. O projeto reuniu pessoas do escalão de Spike Lee e Emir Kusturica, mas o biscoito fino da gravação é o segmento chinês que fecha o filme. John Woo foi especialmente feliz na sua abordagem, pois não falou apenas de crianças, falou de humanidade.

Em Song Song e Little Cat temos uma China imersa em suas conhecidas contradições. Uma desigualdade social pornográfica, a política do filho único, o desprestígio de ter uma filha mulher, a exploração do trabalho infantil. Nesse cenário, conhecemos a vida de duas meninas chinesas. A primeira, abastada, pianista, penteada, rodeada de brinquedos, mas carente de afetos no seio de uma família que se encontra em estado de ruínas; A segunda, miserável, foi abandonada na rua e encontrada por um catador de lixo que a criou com muito carinho, mas mesmo assim não pôde oferecer a ela um ambiente mais saudável para seu desenvolvimento.

Essas duas meninas são ligadas pelo acaso e reconhecerão nos olhares uma da outra sua própria natureza humana, e o mesmo em seus semelhantes. O curta tem poucos diálogos, geralmente triviais e sem efeito. Justamente porque a premissa dessa história é de que a linguagem verbal é limitada e não dá conta dos momentos mais pungentes da nossa experiência humana. Me apresentaram esse curta para explicar o conceito platônico de Arrethon, “o estado da alma tão profundo, visceral, que não há nenhuma palavra capaz de capturá-lo”. Quando algo realmente impactante – demasiado humano-, nos acontece, ficamos sem palavras. O que são lições de moral e frases de impacto diante do incapturável da nossa experiência?

O ponto alto do curta de Woo são os olhares. A real comunicação e empatia entre as pessoas se dá no momento em que o incapturável de cada um entra em contato com o outro. O que é brilhante, pois o filme nos mostra, dentro da proposta do projeto, que só poderemos compreender a experiência do próximo se nos dermos ao trabalho de cruzar olhares. Por isso são crianças invisíveis. Fugimos do olhar que, lancinante, nos arrebata. Ameaça nossa superfície. Nossa frágil estabilidade. A cena do homem que agride a pequena vendedora de flores registra isso com precisão suíça. O olhar da criança simplesmente… o desarma.

O tema não é novo. A própria cultura pop já o explorou diversas vezes. A surreal I’m the Walrus dos Beatles traz isso nos versos (I am he / As you are he / As you are me / And we are all together). O Pink  Floyd, então, em mais de um momento, como na épica Echoes (Strangers passing in the street / By chance two separate glances meet / And I am you and what I see is me) ou na belíssima Us & Them (Out of the way, it’s a busy day / I’ve got things on my mind / For the want of the price of tea and a slice / The old man died). Roger Waters, letrista do Pink Floyd, inclusive, explicita sua opinião em uma entrevista: “Será que os seres humanos são capazes de se identificar e se solidarizar uns com os outros, em vez de se hostilizarem, desconfiarem ou se explorarem mutuamente”?

Por hoje é o que tenho a dizer. O curta está na íntegra no vídeo abaixo. Menos de 20 minutos, menor que um episódio de um anime. Assistam! Infelizmente só está disponível com legendas em inglês. Mas e quanto a você, para o que tem olhos?


Otakismo – Hallyu: A Onda Coreana do pop de Seul invade o mundo!

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Oppa ChuNan Style!

“Em 1965, os Beatles foram nomeados como membros da Ordem do Império Britânico. Os integrantes do grupo pop que abalou o mundo com sua música poderosa foram condecorados como escudeiros, o grau imediatamente abaixo de cavaleiro. Hoje em dia, se a República da Coreia atribuísse título de cavalaria equivalente ao britânico para uma celebridade coreana, a primeira pessoa da lista seria o ator-cantor Ahn Jae Wook (An, Jae-uk), que pode ter realizado algo que nenhum político, empresário ou diplomata jamais fizeram pela nação. (Choe Yong-sik, jornalista do Korea Herald, 2001)

Em meados de julho estourou na internet o clipe de uma celebridade sul-coreana de segundo escalão. Alguns meses depois, Gangnam Style do Psy é o vídeo com mais curtidas na história do Youtube e caminha a passos largos para destronar Justin Bieber e levar para Seul também o título de vídeo com mais visualizações no site. Para dar dimensão do número alcançado até o momento em que redijo este texto, Gangnam Style, um clipe em coreano sem legendas, foi assistido por um volume de pessoas correspondente à soma da população de Estados Unidos, Brasil, Japão, Alemanha e Coreia do Sul.

Uma dança engraçada, um gordinho carismático e uma melodia adesiva, apenas mais uma sub-celebridade gozando seus 15 minutos de fama, categoriza o mais cético. Um clipe tão impactante quanto fugaz, que fez sucesso apesar de ser coreano e não por causa disso, opinam quase todos. O histórico de memes efêmeros que pipocam diariamente pela internet e somem com a mesmo velocidade parece conferir substância a estes argumentos. Mas o sucesso do Psy se resume nisso? Você nunca percebeu que a Coreia do Sul está dia após dia mais presente na sua rotina? Seu celular possivelmente é um Samsung, seu monitor provavelmente um LG. Você é mais impactado por propagandas da Hyundai do que da FIAT ou Volkswagen. Alimentos como os sorvetes Melona são facilmente encontrados em pontos de venda não-orientais. A tecnologia da linha amarela do metrô de São Paulo é toda coreana. Fora do Brasil, um show de músicos coreanos colocou sete mil franceses no Le Zénith de Paris. O grupo Big Bang por dois anos seguidos figurou no top 10 do iTunes nos EUA. Você notava isso… cinco anos atrás? Reforço o questionamento. Você ainda acha que a febre de Gangnam Style foi meramente fruto do acaso?

Psy é apenas o pico de sucesso de um acontecimento crônico conhecido como Hallyu, a onda coreana. O termo classifica a rápida popularização internacional da cultura sul-coreana a partir dos anos 90, primeiro no continente asiático, depois no Oriente Médio e norte da África, e por fim, ainda timidamente, na América e Europa. Só em 2011, a Coreia movimentou US$ 4,2 bilhões em exportações de produtos culturais. O governo sul-coreano já investiu quase US$ 1 bilhão – em medidas de promoção e proteção da propriedade intelectual – na construção de centros de estudo e divulgação da cultura coreana mundo afora. Internamente, centenas de milhares de empregos diretos ou indiretos são sustentados por esse mercado.

O pop coreano, filho da globalização que permitiu a livre circulação de bens, é apenas um dos braços com os quais governo e empresas da península asiática estão internacionalizando sua economia nacional para enriquecer. Não foi coincidência que tantos brasileiros assistiram ao Ronaldo dançando Gangnam Style em seus televisores LG. Os coreanos têm planos ambiciosos e metas agressivas. Nesse post, pretendo demonstrar como a onda coreana – na esfera cultural – está ganhando o mundo e as projeções para o futuro deste movimento tão atual, que ainda não conseguimos olhar em perspectiva e sobre o qual só podemos especular. Não existem fórmulas para criar um sucesso pop garantido, mas ele só chega aos que estão preparados para criar e receber, como muito bem ensinaram os filmes americanos, as músicas britânicas e os games japoneses no século XX. A Coreia do Sul quer entrar neste seleto grupo de exportadores culturais. Quer saber como? Vem comigo! O texto é grande, favorite e leia aos poucos se achar mais confortável.

A PRIMEIRA ONDA – HALLYU 1.0

Tropas americanas e das Nações Unidas ocuparam a Coreia do Sul durante a Guerra Civil do país nos anos 50, deixando na península resíduos culturais. Posteriormente, soldados coreanos que auxiliaram o esforço de guerra americano no Vietnã voltaram para seu país de origem trazendo uma miscelânea de influências musicais: o rock e o folk dos Estados Unidos, o enka do Japão, ritmos latinos e cubanos, além de melodias de origem italiana e francesa. Com o processo de redemocratização entre os anos 80 e 90 (A Coreia do Sul era então um regime militar) e a flexibilização das leis que limitavam a entrada de conteúdo estrangeiro, esperava-se na Coreia uma invasão e dominação das culturas americana e japonesa em detrimento da nacional. Contra todas as previsões, no início dos anos 90 músicas nacionais tomaram os rádios, doramas se enraizaram na programação televisiva e filmes coreanos não foram sufocados por Hollywood. Com o aprendizado obtido no contato com os estrangeiros, os coreanos conseguiram produzir frutos culturais bons o bastante para agradar o mercado interno nos anos 90. Eis que veio a Crise Asiática de 1997…

A crise que afetou tigres e tigrinhos asiáticos erodiu a economia coreana. Acostumados com a lógica produtivista de criar objetos tangíveis (carros, navios, circuitos eletrônicos), a crise obrigou os coreanos a mergulhar em novas possibilidades do capitalismo, dando mais atenção ao financeiro e especulativo no desenvolvimento de uma nova cultura industrial. Para a economia sul-coreana, não bastava mais exportar chips, era preciso desbravar novos mercados e novas possibilidades. Nesse ponto, empresários e governo coreanos enxergaram na sua cultura pop e nacional uma potencial mina de ouro.

Diferente do Japão, a população sul-coreana é pequena comparada aos países vizinhos, menos de 50 milhões de habitantes. Isso significa que o mercado interno do país é muito pequeno. Qualquer empresário que espera ganhar quantias significativas de dinheiro na Coreia precisa olhar para mercados externos. É assim com celular Samsung e com CD do Big Bang. Financiar a Hallyu não foi um luxo, e sim uma necessidade comercial. Como afirma Bernie Cho, líder de um selo de distribuição musical: “Muitos artistas de alto nível fazem mais dinheiro em uma semana no Japão do que em um ano inteiro na Coreia”. Isso ajuda a explicar por que o pop japonês encontra hoje dificuldades de exportação (seu mercado interno ainda é grande o bastante, muitos empresários se agarram nesse porto seguro e produzem produtos só para público japonês – a indústria de animes dá tiros de canhão no pé com essa postura), enquanto o coreano cresce de modo substancial (o imperativo da exportação obriga os coreanos a considerarem as demandas dos mercados internacionais – saibam, Super Junior foi criado sob medida para agradar o público chinês).

A crise não apenas abriu os olhos dos coreanos, mas também implodiu a economia dos países vizinhos, que, ainda incapazes de produzir cultura de qualidade internamente, também não tinham dinheiro para gastar com o caro pop americano ou japonês. O terreno estava pavimentado para a invasão de Seul… e os pioneiros dessa empreitada foram os doramas!

A onda começou na China com a exibição de What is Love em 1997 e Wish Upon a Star em 1999, grandes sucessos de audiência. Na cola deles, grupos musicais coreanos como H.O.T., NRG, BABY V.O.X. e S.E.S. conquistaram não só a China, mas também Taiwan, Hong Kong e Vietnã. O próprio termo Hallyu nasceu na mídia chinesa. Algumas versões dizem que o nome veio de uma coletânea de músicas coreanas lançada no mercado chinês no período. Outras dizem que o termo apareceu em 1999 num jornal chinês quando o H.O.T. fez uma apresentação em Beijing. Detalhe: o termo, nessa versão, teria na verdade um tom cínico, numa alusão lingüística que brinca com o termo “Onda fria”.

A brincadeira ganhou proporção com a conquista do mercado japonês a partir da exibição de Winter Sonata em 2003. Para que vocês tenham noção do sucesso, Junichiro Koizumi, então Primeiro Ministro da segunda maior economia do mundo, brincou, mencionando o protagonista coreano: “vou fazer um grande esforço para que eu possa ser tão popular quanto Yon-sama e ser chamado de Jun-sama” [Yon-sama foi o apelido japonês dado ao protagonista]. Winter Sonata mexeu com a atual crise social da nação japonesa e balançou a visão histórica que os nipônicos tinham dos coreanos como um povo inferiorizado:

“Modismos vêm e vão no Japão, mas este toca vários problemas na sociedade japonesa e em sua relação com a Coreia do Sul. Em uma sociedade dominada por um mal-estar generalizado, onde a incerteza e o pessimismo preenchem as revistas com manchetes sobre homens e mulheres que não se casam, não têm filhos, não fazem sexo, Yon-sama parece abordar a nostalgia japonesa (…) sobre os anseios de mulheres de meia-idade  em busca de uma conexão emocional que lhes falta, e, talvez, acreditam não poder encontrar no Japão.” (Norimitsu Onishi, para o New York Times, 2004)

Paralelamente a Hallyu conquistou outros mercados. Novelas coreanas passaram a ser exibidas em países como Arábia Saudita, Rússia, Nigéria, Colômbia, Israel, Bósnia, Turquia e EUA (para citar apenas alguns países de culturas diametralmente opostas que receberam igualmente bem a produção coreana). No Irã, a novela Dae Jung Geum atingiu 86% de audiência nacional, chegando a 90% na capital Teerã.

Na onda dos doramas, grupos de Kpop, com auxílio do marketing assertivo das agências e do financiamento e proteção do governo nacional, começaram a gravar discos também em chinês e japonês, para facilitar a penetração nestes mercados. A cantora BoA é o principal nome deste momento da música pop coreana (e quase todos vocês devem ter conhecido ela por Every Heart, encerramento de Inu-Yasha cantado em japonês).

O interesse inicial por novelas e músicas coreanas levou a uma crescente curiosidade dos povos vizinhos pela cultura coreana de um modo geral: alimentação, língua, história e produtos culturais tradicionais passaram a ser conhecidos e consumidos. O estilo urbano de Seul, como moda, padrões de comportamento e consumo, começaram a ser imitados. O turismo para a Coreia do Sul, um alvo pouco lembrado por viajantes internacionais, aumentou sensivelmente, e pacotes de viagem que levam fãs para conhecer ídolos e set de filmagens locais são sucesso na Ásia. Em casos extremos, a própria febre por cirurgia plásticas (um problema social na Coreia) é consumida por estrangeiras, que procuram cirurgiões coreanos para ganharem a aparência de alguma estrela do stardom sul-coreano.

Podemos concluir que a primeira onda de cultura coreana nos anos 90 e início dos anos 2000 foi um resultado do fim da polarização política da Guerra Fria e início da globalização (que permitiu a circulação de produtos culturais de um país periférico como a Coreia do Sul), da pequenez do país (percepção da necessidade de internacionalização) e do esforço conjunto de empresários e governantes para transformar a cultura do país, nacional e industrial, em um produto a mais a ser ofertado nos mercados externos para incrementar a economia do país como um todo. Isto é, o mundo mudou e os coreanos souberam surfar na onda gerada pelo abalo sísmico causado pela queda da União Soviética. Outro abalo aconteceu nos últimos anos e mudou o pop coreano de modo estrutural: a democratização da internet pelo mundo. Apresento-lhes a Hallyu 2.0.

A SEGUNDA ONDA – HALLYU 2.0

Se na primeira onda os pioneiros foram os doramas (apenas seguidos pela música pop), na segunda onda a ordem se inverte. O entusiasmo maior está sendo gerado por grupos de música pop como KARA, Girls Generation, Big Bang, SHINee, Super Junior, 2NE1, f(x), Wonder Girls, 2PM e MBLAQ, para citar alguns dos principais; todos agenciados por grupos empresariais como as três irmãs S.M. Entertainment, J.Y.P. Entertainment e Y.G. Entertainment. Além disso, a Hallyu 2.0 é tipificada pela participação da internet – e das redes sociais – no processo de divulgação, ferramenta essencial na manutenção e crescimento da onda, principalmente do Kpop. Qual a importância da internet?

Primeiro, a internet deu maior poder de escolha ao público. Até um passado muito recente, ainda com o predomínio das mídias tradicionais (TV, rádio, cinema, revista, jornal), o capital tinha muito poder na hora de decidir o que o público iria consumir. Não era fácil para uma indústria cultural periférica como a coreana bater de frente com estúdios e gravadoras de EUA, Inglaterra e Japão, não só pela qualidade indiscutível destes concorrentes, mas também pelos métodos de sustentação do poder econômico que o capital acumulado deles proporcionava (jabá, controle acionário dos grupos midiáticos e etc.). Além disso, mídias tradicionais precisam de produtos culturais que movimentem altos volumes de dinheiro, logo, que sejam consumidos por um número grande de pessoas, deixando pouco ou nenhum espaço para os nichos. Na internet o usuário busca e compartilha de modo legítimo o que lhe agrada, sem pretensões comerciais. Você, leitor do ChuNan, consumidor compulsivo de animações japonesas que é, deve entender o que estou falando… se dependesse da Globo, você não assistiria animes da temporada. Nem mesmo títulos de primeira grandeza como Evangelion ou Hunter x Hunter. Teria que se contentar com Naruto e olhe lá.

A internet também possibilitou o compartilhamento de um volume muito grande de informação de modo instantâneo e gratuito (novos fãs) de uma música multisensorial. O Kpop não é só um ritmo dançante e uma melodia grudenta, ele conta também com a habilidade de dança dos integrantes, figurino estilizado e beleza física e juvenil. Um trunfo do Kpop na era do Youtube.

O último ponto, e não menos importante, é a relação do público com as agências e seus ídolos. Na Hallyu 1.0, os coreanos produziram um pop agradável, mas o consumo dele era mais passivo, as pessoas recebiam o que as agências acreditavam que elas queriam (e de certo modo, elas acertaram). Hoje os fãs empenham papel ativo no movimento como co-criadores. Por exemplo, enquanto as agências buscavam produzir músicas em outros idiomas para agradar públicos internacionais, elas descobriram que parte desse mercado demandava as músicas originais em coreano, desse modo, o Big Bang promoveu seu álbum nos EUA em coreano. Flashmobs e interação nas redes sociais mostram novos focos de demanda, como Argentina, Peru e Cazaquistão, que estão recebendo ou estão para receber shows dos grupos sul-coreanos.

Falando um pouco em números, a 2.0 também aumentou em proporção. Girls Generation tocou para mais de 140 mil japoneses, vendendo meio milhão de álbuns nesse mercado. Sobre a internet (ainda pré-Psy):

“O principal jornal coreano, JoongAng Ilbo, publicou um artigo em Janeiro de 2011 analisando um total de 923 vídeos de cantores coreanos das três maiores agências de entretenimento que foram postados no Youtube (…) De acordo com a análise, usuários de internet de 229 países assistiram aos vídeo 793.57 milhões de vezes em 2010. Por continente, o número bateu a marca de 566.27 milhões na Ásia, 123.47 milhões na América do Norte e 55.37 milhões na Europa. Por nação, o Japão vem em primeiro com 113,53 milhões, seguido pela Tailândia com 99.51 milhões e os Estados Unidos com 94.87 milhões.” (No Brasil, pouco mais de 6 milhões, número superior ao alemão, mas inferior ao saudita)

A FORÇA DO POP COREANO

Ok, você diz, já entendi o contexto histórico do surgimento da onda coreana e percebi que ela tem forças impressionantes. Sei que há esforços de instituições diversas para a sua popularização. Mas nada faz sucesso sem méritos. Quais são os méritos do pop coreano? O que nele conquista as pessoas? É, não sei. Ninguém sabe ainda. Pelo menos não com certeza. Há teorias diversas defendidas em simpósios pela Coreia do Sul. Existem perspectivas nacionalistas, pós-coloniais, neoliberais, entre outras. Não vou me prender a escolas de pensamento, apenas pincelar algumas visões mais bem aceitas ou propagadas.

Há argumentos de que o que faz sucesso nos produtos da Hallyu é a ‘sensibilidade coreana’. O alicerce moral da cultura nacional deles é o Confucionismo de origem chinesa. Entre os principais pilares dessa moralidade estão a valorização dos laços familiares e da harmonia na sociedade. O pop coreano teria mantido esses princípios morais que dialogariam positivamente com os demais países influenciados pela mesma moralidade, justificando principalmente o estrondoso sucesso dos doramas na Ásia. Eles fariam um contraponto às produções individualistas e violentas de origem ocidental ou japonesa, se apresentando como uma novidade em termos de estética e roteiro. Mas isso não explica o sucesso, ainda que moderado, da Hallyu fora da Ásia confucionista, nem cobre com um pano as produções coreanas de sucesso igualmente sensacionalistas ou violentas.

Outros afirmam que o pop coreano de qualidade encontrou espaço aberto nos países com sentimentos anti-japonês e anti-americano da Ásia. O Japão barbarizou algumas regiões nos tempos do Império, impôs medidas de aculturação forçada e certas feridas históricas ainda não foram cicatrizadas. Em países de passado ou presente Comunista, o sentimento contra Japão e EUA é ou foi institucionalizado no discurso do Estado e propagado nos livros didáticos. A Coreia do Sul, por outro lado, não seria enxergada como uma ameaça física ou cultural. Este argumento talvez funcione para a China, mas se choca com os fatos de que o Japão e os EUA são culturas pop presentes há muito mais tempo e com mais intensidade nos próprios países que um dia açoitaram (ou são acusados de terem açoitado) na Ásia.

Um terceiro argumento é da Hallyu como resultado de um colonialismo cultural. O pop coreano seria apenas uma cópia sem identidade das culturas estrangeiras, que jamais conseguiria sair da sombra dos EUA e da Europa Ocidental, pois luta com as mesmas armas, só que mais antiquadas, com menos munição, menos experiência de guerra e em terreno menos propício.  Não haveria futuro para a Hallyu sem se desvincular de uma tradição cultural que não é a coreana, esta,  que aos poucos estaria sendo morta pela cultura pop. Financiar a Hallyu seria uma morte em duas frentes; ela fracassaria, e levaria consigo a cultura nacional do país. Uma visão a meu ver muito fatalista e retrógrada de cultura.

A explicação comercialista não tenta encontrar verdades ocultas. Essa perspectiva enxerga a cultura como um produto, produto como dinheiro, e dinheiro como prosperidade. Cultura seria um elemento competitivo no comércio internacional e o sucesso é garantido com a plena execução de estratégias bem elaboradas de regulamentação da qualidade dos produtos da Hallyu, distribuição global contínua por meio da produção em maior escala e desvinculação da Hallyu com o fervor nacionalista. Nessa visão, enlatados culturais não matariam a cultura coreana, ao contrário, preparariam o terreno para a expansão e perpetuação dela, como Godzilla teria feito por Kurosawa pelo Japão. Cultura pop e cultura nacional andariam de mãos dadas em prol da Coreia do Sul, não haveria por que temê-la. Mas bastaria querer e ter dinheiro para conseguir despertar um carinho significativo em tantas culturas diferentes? Então por que outros não conseguiram o mesmo? Visão dinheirista demais, parece subestimar elementos culturais e a postura ativa dos receptores dela.

Não há consenso quanto a isso. Todos os argumentos parecem ter fragilidades e não se explicam por si só. Algo mais próximo da realidade talvez esteja na intersecção desses e outros elementos ainda não explorados. Mas vou tentar apresentar alguns argumentos favoráveis aos elementos internos da Hallyu, dos dois embaixadores da onda: doramas e Kpop.

“Os K-doramas oferecem entrelaçados temas de família, romance, amizade, artes marciais, guerras e negócios, e são vistos como capazes de lidar com os ‘seguros': eles são menos explícitos comparados aos americanos, e aderem relacionamentos de um modo mais afetivo e significativo, mais emocional do que sensual (…) Um olhar mais atento mostra que diferentes novelas são populares em diferentes países por razões diversas. Americanos acham os doramas coreanos relaxantes e alegres; europeus acham os roteiros descomplicados e românticos. Asiáticos, por sua vez, descobrem estilos de vidas e tendências que pretendem imitar. A repressão sutil das emoções e intensa paixão romântica sem excesso de sexualidade ressoa entre os espectadores do Oriente Médio.”

Os doramas mostraram um estilo de vida moderno e próspero, além de vender o povo coreano como sofisticado, educado e digo de respeito. Em países como Japão e China, potências regionais, serviu para quebrar um pouco os preconceitos e estereótipos. Em países mais pobres ou com passado/presente comunista, como o Vietnã, venderam um padrão de vida próspero e saudável, logo, desejável, aspiracional.

O Kpop, por outro lado, é sustentado por uma indústria fonográfica muito boa em vender sensações, algo que combina com o hedonismo contemporâneo (ou com a visão pós-moderna de alguns):

“Na Coreia nós usamos músicas e performances muito poderosas. Tudo deve ser perfeito. A música pop japonesa não tem movimentos adoráveis nem performances poderosas, mas na Coreia você deve ser o maior e… se você quer ser adorável, você tem que ser muito adorável. Se quer ser sexy, tem que ser muito sexy” (Joy, do grupo Rania)

As agências buscam talentos cedo, e não só na Coreia, mas na China, Japão, Tailândia, EUA e Canadá, principalmente. Artistas coreanos são espartanamente selecionados e treinados para não apenas cantar e dançar, mas aprender línguas e culturas estrangeiras, como se expressar, como se portar em público, como atuar. Rain, por exemplo, além de cantar, também atuou em filmes como Speed Racer e Ninja Assassin. O stardom sul-coreano é muito seletivo, e com tanto treinamento holístico, dificilmente erra em atender as demandas do seu público.

Mas será que tudo são flores?

GANGNAM STYLE:

PSY É UM ICONOCLASTA?

Qualquer ocidental que acompanhou a tradução de Gangnam Style bateu o martelo: essa letra tem a profundidade de um pires. Analistas coreanos, em contrapartida, observaram nuances que qualquer pessoa que nunca esteve na Coreia jamais poderia captar. Com o clipe, Psy estaria parodiando o estilo de vida de Gangnam, pequeno bairro dos endinheirados de Seul, sede de empresas e lojas de grife, local criador de tendências. 7% do PIB nacional concentrado em poucos km². Mais do que isso, Psy estaria ridicularizando as pessoas que aspiram ao estilo de Gangnam, isto é, que querem fazer parte dele, mas não tem poder financeiro nem status social para tal. Daí – no vídeo – ele se veria numa hípica de um campo de polo (junto com o golfe, o esporte símbolo dos ricos), mas depois percebe que está apenas dando voltas num cavalinho de carrossel. Ou que ele está se bronzeado numa praia, para depois perceber que está bancando o ridículo num playground. Estaria Psy marretando ídolos?

O Kpop é uma cria de Gangnam. As principais agências de entretenimento que engendraram o estilo estão sediadas lá. HyunA, membro do 4minute, a ruivinha do metrô que cavalga em cima do Psy, é contratada da Cube Entertainment de Gangnam-gu. Juntos, gravaram uma versão da música pelo ponto de vista feminino, e oppa Gangnam style foi substituído por oppa is just my style. O estilo juvenil e fashion de Gangnam que ela de fato faz parte e ajuda a propagar. Nessa nova versão sai do palco o humor bufão e entra a sedução ao tempero asiático, pernas finas de fora, aegyo no refrão e um estilo infantilóide de provocar. Sobre a participação dela no clipe original, Psy relata sem falsa modéstia:

Ela super não fazia esse tipo de coisa antes. Ela perguntou: ‘Por quê? Por quê? Por que eu fiz isso…?’ Estava se perguntando ‘o que é isso? Ele fica me pedindo para fazer essa merda idiota. Eu não faço ideia. Do que você está falando?’ Em certo ponto ela percebeu o que estava acontecendo e disse: ‘Ah, Psy, seu idiota! Isso é genial, é demais!’ Foi isso que ela me disse no meio do clipe. E aí ela fez certo.”

Onde eu quero chegar? A avacalhação de Psy pode não estar direcionada apenas de modo geral ao estilo de vida glorificado pela região de Seul, mas ao próprio sistema de manufatura de ídolos do qual ele faz parte. Park [seu nome verdadeiro] é uma espécie de ovelha desgarrada desse sistema; na casa dos 30, gordo, com pouco a oferecer em termos de capital estético, já foi detido por porte de maconha, fugiu do serviço militar obrigatório do país e testemunhou álbuns seus sendo censurados e banidos na Coreia. 1/5 disso seria mais do que justificativa para a rescisão contratual de uma estrela do stardom coreano. Falemos um pouco dele.

Precisão e conformidade diferenciam o Kpop. Para a criação dos grupos, as agências [diferente do Ocidente, onde músicos são cuidados ou produzidos pelas gravadoras] precisam investir alguns anos e milhões de dólares em treinamento. Grupos atuais com sete membros inicialmente tinham 40 ou 50 jovens (alguns muito jovens) que foram pré-selecionados, mas acabaram excluídos um a um, sobrando apenas os mais aptos. A rotina de treinamento normalmente ultrapassa as 12 horas diárias, impedindo contato com família e amigos. Relações amorosas são proibidas por força de contrato. Membros do grupo Rania, por exemplo, não podiam ter telefone celular antes da estreia.

Apesar da rotina sobrecarregada, as celebridades mais proeminentes costumam ser relativamente respeitadas por suas agências, não apenas pela exposição midiática a qual estão expostas, mas pela fonte de renda que representam. Por outro lado, inúmeras agências menores são acusadas de propor contratos fáusticos para jovens – iludidos pelo sonho da fama – que ainda nem teriam condições de julgar a validade de cláusulas tão amarradas presentes nos contratos que fecham ainda na adolescência. São pactos com duração superior a 10 anos, com termos invasivos em suas vidas pessoais.

O Strait Times, jornal de Singapura, denunciou que a Alpha Entertainment veta contratualmente a ingestão de alimentos e água após as 19h, bem como proíbe que seus pupilos saiam sem supervisão. De vez em quando os conflitos atingem até os grupos mais famosos. Han Geng, ex-Super Junior de origem chinesa, processou o Grande Arquiteto do Kpop, empresário Lee, por ser forçado a trabalhar dois anos seguidos sem um único dia de folga, ter ficado doente por conta disso, e não ter sido recompensado  proporcionalmente de acordo com a lucratividade que ajudou a gerar – tudo baseado num contrato com duração de 13 anos assinado aos 18. O tribunal sul-coreano deu ganho de causa para o jovem.

De modo curioso, Psy foi o primeiro coreano a genuinamente bombar nos Estados Unidos, e conseguiu isso justo com uma chacota sobre o estilo ao qual ele supostamente está servindo como porta-voz. No final do clipe, ele canta triunfante em seu trono hip hop – estilo tão emulado pelos cantores da Coreia – para depois compreender que ele está pagando de bacana em uma… privada. Ainda no começo, ele dança contra o vento com uma beldade sob cada braço, mas a sequência é pitoresca. Lixo é arremessado na cara deles e as moças demonstram evidente desconforto com a situação, enquanto um Psy impassível se deleita com seu momento de gangsta, totalmente desconectado do que acontece ao seu redor. Ludibriado. Encantado demais para olhar em volta.

Não só uma zombaria com as coreanas que andam de costas para perder peso e perseguem o padrão de beleza do mainstream, ou com aquelas que economizam no almoço para se sentirem elegantes e superiores bebendo café no Starbucks com o dinheiro (!) – como enumera Jea Kim, responsável pelo blog Dear Korea. Talvez o estilingue do Psy mire também as pessoas (os ídolos pop juvenis) que ajudam a construir esse arquétipo de glamour que almeja a eterna juventude, elas próprias vítimas do mito que arquitetam; afinal, os dois lados dessa moeda – ídolos e fãs, ou se preferir, produtores e consumidores – estão dispostos a passar pelo crivo do bisturi para se adequarem a ele (a Coreia do Sul é o país onde mais se faz, proporcionalmente, cirurgias plásticas).

Requisitei a imagem do estilingue porque obviamente Psy não usou nenhuma arma letal.  Sua crítica não tem qualquer pretensão destrutiva ou reformista, ao contrário, sua intenção foi fazer as pessoas darem risada com o clipe, entreter. Está aproveitando como ninguém o sucesso proporcionado por essa indústria de ídolos. O rolo compressor de Gangnam Style não está destruindo ídolos, ao contrário, de bom grado está na dianteira abrindo caminho para eles. Não sem um traço de deboche.

HALLYU NA COREIA DO NORTE

                A onda coreana hoje consegue banhar até os lugares mais improváveis do mundo, como o regime ditatorial norte-coreano, talvez o país no mundo que mais controla o fluxo de informações. Doramas entram de forma clandestina, principalmente via China, ajudados pela corrupção generalizada dentro do país. Num verdadeiro processo de escambo, onde pessoas trocam arroz por mídias com novelas gravadas, informação do Sul está penetrando aos poucos no vizinho do norte. Lideranças de Pyongyang tem motivos suficientes para se preocupar, pois as novelas servem como uma divulgação de um estilo de vida mais próspero do que aquele fornecido à população pela dinastia Kim. No país, ter posse, alugar ou emprestar conteúdo visual de origem sul-coreana é crime passível de punições como prestação de serviços forçados ou mesmo cadeia. A resposta do Estado para a produção e/ou divulgação massiva desse tipo de material pode ser mesmo a Execução em público.

A geração Jangmadang [pessoas que estão na faixa dos 20-30 anos] não parece se importar como as passadas. Passaram sua juventude durante a ‘Marcha da Tribulação’ [período entre 94 e 98 onde a Coreia do Norte sofreu com uma crise de abastecimento alimentício, e centenas de milhares - outros dizem milhões – morreram de fome ou por problemas dela decorrentes] e muitos já não nutrem a mesma simpatia pelo Estado ou pelo Juche [a ideologia oficial do Partido Comunista criada por Kim Il Sung, que, segundo eles, seria uma evolução do próprio pensamento marxista]. Escaldados pela fome de outrora, tendo como prioridade o acesso seguro à alimentação, e conhecendo clandestinamente o estilo de vida dos irmãos do sul, essa geração já apresenta focos de resistência passiva ao sistema retrógrado dos Kim. Não hesitam em optar pelo mercado do contrabando para garantir sua subsistência e alguns luxos. Há relatos de jovens norte-coreanos imitando cortes de cabelo e dança dos doramas do sul. O governo de Seul não poderia ficar mais feliz.

ANTI-HALLYU?

No Japão, um dos principais mercados para a Hallyu, está acontecendo uma movimentação no sentido oposto: a anti-Hallyu. Tudo começou quando o ator Takaoka Sasuke foi demitido pela sua agência por criticar no Twitter a predominância de programas de origem coreana transmitidos pela Fuji TV. A discussão fomentada pelo caso ganhou tons de rivalidade política. No dia 21 de Agosto, em torno de seis mil japoneses se reuniram na sede da emissora para protestar. A acusação é de que não existe onda coreana alguma no Japão, que não seria nada além de uma coqueluche artificial parida pela mídia, que fraudaria números e informações, interessados em renovar a imagem da Coreia do Sul no país. Teorias e evidências pipocam por boards da internet como o 2chan, onde investigaram e relataram que a Fuji TV é acionista de inúmeros grupos ligados ao Kpop e teria interessa na fabricação do seu sucesso – situação que fere a constituição japonesa, pois estariam camuflando propaganda como mídia jornalística.

Críticos dessa postura a condenam como fanatismo nacionalista. Um modo antiquado de enxergar o mundo e a participação do Japão na era globalizada. Essa repulsa ao diferente seria um suicídio para um país já em crise que demanda com urgência, na visão deles, medidas de reforma e abertura política. Os criticados respondem que nada têm contra coreanos ou contra a Coreia, mas que não é válido fabricar uma febre que desvaloriza a cultura nacional e desloca capital para outro país. No protesto, um depoimento dizia: “O Japão está passando por um período difícil, e não há necessidade de assistir a um canal que apoia outros países”. Independente de quem tenha razão nessa discussão, focos de resistência na terceira economia e no segundo maior mercado fonográfico do mundo não é uma boa notícia para os empresários coreanos e para a sobrevivência do seu pop.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Muitos fãs jovens ao redor do mundo experimentam a ‘onda coreana’ como uma unificação, um mecanismo de cura para suas almas feridas, e como uma saída para a auto-realização. Há alguns, no entanto, que consideram a ‘onda coreana’ como algo a ser combatido, porque eles a reconhecem como uma invasão cultural” (Park, Chang)

Gostaria de iniciar minhas considerações finais com uma advertência necessária. Por favor, não superestimem a Hallyu. Falemos um pouco também a respeito de suas fragilidades. A indústria do entretenimento coreana conseguiu se infiltrar entre gigantes e, como um todo, movimentar mais de US$ 4 bilhões nos mercados externos durante o ano passado. Uma quantia notável, mas ainda insignificante quando comparada às indústrias nacionais que de fato mandam na produção cultural do mundo. Em termos de comparação, um único jogo de videogame americano – Call of Duty: Black Ops II – arrecadou US$ 500 milhões em 24 horas. A alegoria de uma briga entre Davi e Golias nesse momento é indevida por sua inadequação, não existe a menor possibilidade de Davi ameaçar Golias, nem mesmo no longo prazo. O máximo que eles conseguirão é incomodar um pouco em certos momentos, e justamente neste ponto reside uma ameaça para a onda coreana. Enquanto se é pequeno, os grandes não se incomodam com sua existência. A partir do momento em que os coreanos começarem a morder alguma fatia do mercado alheio, retaliação e protecionismo por parte das empresas concorrentes podem fechar as portas para a Coreia em mercados essenciais. E acreditem, o impacto financeiro da Coreia no Ocidente ainda é insignificante, eles são grandes na Ásia, mas sequer arranham o Oeste. Mesmo aparecendo na MTV. Mesmo bombando no Youtube.

Protecionismo pode existir não apenas em termos de concorrência mercadológica, mas envolver protecionismo nacional. No Japão já há movimentos de tom nacionalista contrários à invasão dos produtos coreanos, enquanto na China o Partido Comunista já baixou leis limitando a transmissão de produções estrangeiras, enquanto estudam meios deles mesmos criarem uma cultura pop atrativa que não ameace seu regime – os chineses sabem que não podem ser apenas uma potência militar e política, cedo ou tarde precisarão conquistar também o coração dos outros povos [Soft Power], e não há o menor interesse de Pequim em permitir uma invasão coreana arquitetada pelo governo de Seul. A Coreia do Sul não terá vida fácil nos seus três principais mercados.

“Dez ou vinte anos atrás, estávamos preocupados com os efeitos sociais das culturas americana e japonesa no nosso país. Nós repreendemos os jovens que se satisfaziam com elas e tomamos medidas para proteger nossa cultura [coreana]. Quando as invasões americana e japonesa se converteram em invasão econômica por meio da venda de produtos culturais, nós nos irritamos e levantamos nossas vozes. Agora que ‘o sapato está em outro pé’, nós não pensamos seriamente sobre o que a Onda Coreana significa para as pessoas do outro lado” (Won Yong-jin, crítico cultural)

Uma limitação estrutural do pop coreano é sua pouca diversidade e baixa criatividade. A indústria ainda está muito refém do Kpop e dos doramas, sem nada muito significativo para combater em outras frentes. Além disso, praticamente todos os grupos musicais estão criando sob a mesma fórmula – de origem americana – e os empresários das agências admitem que o Kpop apresenta uma lacuna em inovação; apenas com dança competente, a onda não irá longe. Enquanto eles apenas emularem invenções e estilos americanos com o acréscimo de uma ‘alma coreana’, eles nunca conquistarão os mercados ocidentais que não enxergam isso como algo legítimo. Tampouco conseguem reconhecer o que seria um verniz coreano.

Uma ala de críticos culturais defende que a Coreia precisa seguir o exemplo do Japão e vender melhor a cultura nacional do país como um todo. O Japão se beneficiou do seu exotismo perante o olhar ocidental e desde o século XIX espalhou seus tentáculos pelo mundo. Da apropriação da arte pictórica nipônica pelos artistas impressionistas europeus até a propagação das artes marciais, da literatura, do vestuário entre outros tantos exemplos (o anime Ikoku Meiro no Croisée se passa nesse contexto). Cultura pop é descartável por definição. Seria necessário fazer com que pessoas de todos os cantos do planeta se apaixonem pela cultura do país para a indústria não ficar refém da fugacidade dos seus produtos. Para o futuro da onda, seria preciso que as pessoas queiram se sentir um pouco coreanas, invejem os coreanos, sonhem em fazer parte e compartilhar alguns elementos dessa cultura – como meninos colombianos fazem com a americana.

Não é uma opinião unânime. Maxwell Coll, jornalista residente em Seul, crê justamente no oposto. O esforço governamental concedido à popularização da cultura coreana, que ajudou financeira e legalmente o crescimento da Hallyu em seus primórdios, hoje se apresentaria como seu principal gargalo e ameaça. Os políticos de Seul, não interessados apenas no impacto econômico, mas sobretudo na imagem e identidade do país, estariam matando a espontaneidade do pop produzido na Coreia. Ao se esforçar para melhorar a imagem do país no exterior e aumentar a autoestima dos cidadãos, o governo estaria se intrometendo no mercado e forjando produtos com uma ‘coreanidade’ artificial. Com uma agenda política por trás, a Hallyu estaria negligenciando as demandas dos fãs – ou seja, o mercado – e superestimando o aspecto nacional de produtos que fazem sucesso justamente por seu perfil global. Nas suas palavras: “o governo, com suas iniciativas culturais e comentaristas nacionalistas, estão prejudicando os artistas coreanos e limitando o potencial da Hallyu. Eles estão fazendo um desserviço aos atores, cantores, produtores e diretores”.

Não só fragilidades e ameaças esperam os coreanos no futuro. Um papel interessante que a Hallyu já está fazendo, e impulsionará ainda mais, é a renovação da imagem interna e externa da nação coreana. Historicamente tratados e vistos como inferiores por vizinhos e dominadores, os coreanos estão conseguindo renovar essa identidade na aldeia global apesar das suas limitações sociais e geográficas.

A Hallyu também tem potencial para atacar em novas frentes. O cinema coreano hoje é um dos mais respeitados do mundo. Filmes pipoca como Oldboy e Shiri ganharam projeção internacional, ao passo que na ala cult, Kim Ki-duk faturou o Leão de Ouro no Festival de Veneza deste ano, entrando de vez para a seleção dos principais diretores da atualidade. Na literatura, escritores como Shin Kyung-sook e Kim Young-ha já estão sendo editados em mercados internacionais e podem render frutos num médio-longo prazo.

Enfim, resta-nos observar os próximos passos da Hallyu para saber se a onda ganhará força e se tornará um tsunami a encharcar mercados resistentes, ou se perderá vitalidade e findará como uma marolinha no mar do Japão.


Otakismo – Um panorama da arte contemporânea japonesa

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otakismoA volta dos textos do Otakismo ao Chuva de Nanquim.

“Ao discutir arte contemporânea do Japão, há uma necessidade crônica de ir além do kawaii, anime, mangá, otaku e essas coisas. De muitas maneiras, o que o Ocidente vê como o ‘Japão de hoje’ é mais precisamente um reflexo dos dias de glória da geração otaku nos anos 90, ou seja, uma visão do Japão 10 anos desatualizada.” (Adrian Favell, em 2009!)

Quando somos levados a pensar em arte japonesa, uma sorte de figuras costuma aparecer em nossas mentes de imediato. Imagens chapadas de pontes, flores ou do Monte Fuji, construídas com pinceladas precisas e suaves. Alguns podem buscar a memória do som do shamisen acompanhando a dança das gueixas. Entre outros exemplos, quando se fala de arte japonesa, as imagens que povoam o imaginário coletivo, de modo geral, são aquelas do Período Edo (1603-1868), típicas do Japão recém-descoberto pelo Ocidente no século XIX ou baseadas no estilo artístico daquela época. Se nos desafiarmos a pensar o que é a arte japonesa de hoje em dia, é muito provável que nossa primeira lembrança seja dos produtos de consumo da indústria pop japonesa, advinda dos mangás, animes e jogos eletrônicos. Temos dificuldade em distinguir o que é arte ou entretenimento nas produções japonesas que vieram após a pacificação do país com o término da Segunda Guerra Mundial.

tabaimoExiste uma explicação para o fato de que as imagens do Japão pop tenham sido internacionalmente generalizadas como a representação do Japão do nosso tempo, ou melhor, nomeadas como embaixadoras do país mundo afora. Essa justificativa não passa pela hipótese da inexistência de artistas de qualidade (entendendo ‘artista’ na concepção ocidental do termo). O pós-guerra japonês apresentou artistas de renome como Yayoi Kusama, Hiroshi Sugimoto, Yasumasa Morimura, Yoko Ono, Tatsuyo Miyajima e Tadashi Kawamata. Trouxe também contribuições importantes em movimentos modernos como a Anti-art e o Mono-ha. Atualmente continua preparando jovens com grande potencial, caso da Tabaimo, Miwa Yanagi, Motohiko Odani e Kohei Nawa. Apesar disso, apenas três artistas contemporâneos do Japão são mencionados como nomes que guiarão o mundo da arte no século XXI junto com os estrangeiros, todos eles relacionados de alguma maneira com as fantasias pop do movimento Superflat: Takashi Murakami, Yoshitomo Nara e Mariko Mori. Murakami, particularmente, foi considerado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2008.

Makoto Aida3Que caminho percorreu a arte japonesa no final do séc. XX para que ela se confundisse com o imaginário descartável da cultura pop comercial? Para esclarecer essa questão, será necessário primeiro mapear o contexto histórico, de modo que a produção artística nipônica seja compreendida à luz da realidade objetiva do país que lhe deu origem. Com tal missão, este texto passará brevemente pelo contexto global do nosso tempo, pela história do pós-guerra asiático (pela relação do povo com a sua memória histórica) e pelos esforços do governo japonês em internacionalizar sua cultura nacional. Por fim, investigar o que a arte contemporânea do Japão produziu nas últimas duas décadas, seus principais artistas e movimentos (Superflat, Zero Zero Generation, Chim↑Pom e etc.), suas implicações e provocações direcionadas ao povo japonês e ao mundo/mercado da arte, bem como descobrir as vozes que não compactuam com esse universo pop, mas foram abafadas pela onipotência do discurso Superflat dentro e fora do Japão – enquanto tentam demonstrar que o país não é apenas composto de Hello Kitty’s. Nas considerações finais, o texto passará pelo que podemos esperar da produção artística japonesa no futuro, tendo em vista que ela foi profundamente modificada em propósito pelos desastres naturais e atômico de Fukushima, além de encarar a desleal concorrência por atenção e financiamento com a emergente produção artística da China (China Mania). Espero poder levantar questões relevantes durante a leitura deste artigo!

Matsuhiko OdaniAntes de falar de arte japonesa, eu preciso falar um pouco do ambiente japonês. Ah, o texto é grande, favorite e leia aos poucos se julgar mais confortável. As palavras sublinhadas são links clicáveis que ilustrarão o dito.

~COOL JAPAN~

“‘Cool Japan’ celebrou o Japão quando não havia muito o que celebrar. Ao contrário. Políticos estagnados, negócios internacionais vacilantes, má relação com o resto da Ásia, uma crise demográfica iminente, um monte de jovens trancados em seus quartos com problemas psicológicos. Apesar disso, depois do 11 de Setembro nos EUA, houve uma demanda por imagens de brilhantes torres prateadas com flores e dinossauros felizes [Roppongi Hills],  e não de uma colapsando com fumaça e chamas ao redor [World Trade Center].” (Adrian Favell)

Nenhum país no mundo apresentou durante o século passado crescimento econômico e progresso material de forma tão vertiginosa quanto o Japão. O país emergiu da 2ª Guerra fisicamente em frangalhos, militarmente ocupado e moralmente arruinado. Quatro décadas depois as corporações japonesas solapavam colossos industriais dos Estados Unidos e Europa enquanto economistas apostavam na inevitável superação da economia americana pela nipônica. Isso não aconteceu, ao contrário, desde o início dos anos 90, quando estourou a bolha imobiliária do país, o Japão se encontra estagnado, sofrendo há mais de 15 anos com uma economia deflacionária que perde dia após dia a relevância e a competitividade que possuía nas décadas passadas.

~kawaii~Como afirmou o próprio governo japonês em um relatório oficial: “Já não podemos mais contar com os modelos convencionais da indústria e economia japonesa, que consistem em produção em massa, consumo em massa e competição por custo. O Japão não irá sobreviver sem a criação de novas fontes de receita”. Com a falência do modelo econômico responsável peloMilagre Japonês’, o governo buscou novas formas de rentabilizar sua produção, e enxergou em sua cultura nacional, principalmente a cultura pop, uma alternativa de valor.

“De alguma maneira, nesse universo dos animes, mangás e jogos, criou-se uma aproximação com algumas questões que estão em jogo em diversas situações e se referem à perda da humanidade, da identidade, dos gêneros, ou da própria vida. É o mundo pós-Akira que começa quando quase tudo já acabou, como propôs Katsuhiro Otomo no mangá de 1984, que originou o filme homônimo.” Christine Greiner

VersaillesA nova política comercial recebeu o nome oficial ‘Cool Japan’, possivelmente inspirado no esforço inglês de fazer o mesmo com o Britpop, denominado ‘Cool Britannia’. O Ministério da Economia, Comércio e Indústria espera quadruplicar o faturamento com a exportação de elementos culturais até 2020, saltando dos atuais US$50 bilhões para desejáveis US$200 bilhões, tendo como foco estratégico a alimentação, moda, anime, mangá, artesanato, utensílios do cotidiano e turismo; Além de usar, é claro, sua desejada imagem pop como atributo para agregar valor em sua produção industrial (marketing). Com a mira apontada, sobretudo para a classe média ascendente da Ásia, como as de Singapura e Indonésia, o Japão tem relatórios detalhados com os passos necessários para se tornar cool em cada país. No caso de Singapura, por exemplo, o governo é claro:

“A crescente popularidade do conteúdo da Coreia do Sul está causando um declínio na imagem do Japão ente os jovens que determinam o que é popular em Singapura e em outras nações asiáticas. Para reverter esta tendência, este projeto vai trabalhar como um consórcio composto principalmente por empresas japonesas que estão alarmadas com a situação presente, para garantir oportunidades de exposição regular de conteúdo japonês e para que os membros do consórcio adquiram ganhos no exterior” (METI)

Ichi Rittoru no NamidaAdrian Favell classifica o Cool Japan como um Neo-Japonisme, um renascimento do encanto ocidental pelo Japão (em referência ao Japonisme do século XIX, momento no qual inúmeros artistas impressionistas europeus se inspiraram na arte clássica japonesa). Não foi por acaso que o Japão se tornou pop no mundo inteiro a partir dos anos 90 (e o boom começou no Brasil em 1994 com Cavaleiros do Zodíaco). O estereótipo do salaryman japonês, que produzia as maravilhas tecnológicas modernas como o Walkman, foi substituído – de modo consciente e arquitetado – pelo estereótipo da cultura urbana e otaku japonesa, do divertimento jovem, hedonista e descompromissado.

A influência da cultura japonesa deveria substituir a extensão internacional da manufatura e das finanças nipônicas. Cool Japan, nas mãos dos políticos conservadores do país, se tornou ferramenta de política externa. O Ministério de Relações Exteriores do Japão nomeou como ‘embaixadoras do kawaii’ três meninas vestidas com a moda juvenil de Harajuku. Garotos propaganda da cultura japonesa foram internacionalmente divulgados, como os cineastas Takeshi ‘beat’ Kitano e Takashi Miike, o fashion designer Issey Miyake, o romancista Haruki Murakami, o chefe de cozinha Nobu Matsuhisa, o artista plástico Takashi Murakami (de quem falarei muito), entre outros.

Takeshi KitanoÓrgãos como o Japanese Foreign Ministry, a Japan Foundation e a Agency for Cultural Affairs (Bunka-cho) gastam milhões de ienes todos os anos para moldar a imagem que o Japão presente terá no mundo. A arte contemporânea virou uma das principais frentes de batalha por dialogar com uma elite rica e cosmopolita.

“O que eles falavam a respeito, enquanto a economia permanecia estagnada e a influência do Japão no mundo diminuía, era cultura: como ressignificar e remontar a imagem internacional do Japão. E assim eles colocaram mangás e animes em folhetos oficiais. Videogames e personagens de brinquedo substituíram carros e computadores como os símbolos principais da indústria exportadora japonesa” (Adrian favell)

Embaixadoras do KawaiiÉ evidente, apenas o lobby político de Tóquio não seria capaz de criar uma mentalidade voltada para a arte, a realidade mundana do Japão pós-industrial foi um excelente combustível para movimentar esta máquina. A economia degringolou, o Imperador Hiroito morreu (em 1989) e o período Showa terminou levando consigo os tempos áureos do país. O capital internacional migrou para outras regiões da Ásia, como a China e a Coreia do Sul, e o sonho japonês terminou. Sem esperanças de encontrar ou construir um futuro melhor para si e para o Japão, muitos jovens perderam a referência e passaram a apresentar sérios problemas de socialização. A sociologia japonesa a partir dos anos 90 criou ou intensificou o uso de uma infinidade de termos para tipificá-los, como hikikomori (isolamento doméstico extremo), parasaito singuru (adultos solteiros que vivem eternamente na casa dos pais), make inu (mulheres que não se casam), enjo kosai (meninas quase sempre menores de idade que participam de encontros compensados),  homens herbívoros (que voluntariamente deixam de competir por mulheres e empregos), otaku e etc.

Olha o nível do cidadão...Outros jovens, no entanto, reagiram de modo diferente ao Japão que gangrenou. Com sonhos esfacelados, eles debandaram do sistema corporativo japonês para viver como ‘espíritos livres’, afastados da lógica comercial vigente. Eles aceitam viver de freelas ou em empregos temporários que apenas garantem subsistência sem luxos. O entusiasmo dessas pessoas, que em tempos melhores era aproveitado pela indústria do país, hoje é quase que completamente desaguada em expressões culturais. É a geração de Hiroshi Fujiwara, Cornelius e Jun Takahashi. Tendo que viver num mundo de fantasias, fartamente alimentados por mangás e animes, estes jovens dão corpo aos seus pensamentos na forma de arte, geralmente ingênua e quase sempre medíocre, enquanto estão trancados em seus quartos.

Favell defende que o Japão atual vive um superávit criativo, mas ele não está mais sendo empregado pela indústria nacional para se reinventar e recuperar a competitividade perdida nos mercados internacionais, está sendo, na verdade, desperdiçado em arte adolescente. Do mesmo modo que, como orientam Hiroki Azuma e Etienne Barral, o rígido ensino matemático das escolas japonesas não está sendo integralmente aproveitado em complexos sistemas estatísticos que aperfeiçoam a administração corporativa. Muitos jovens estão usando estas habilidades adquiridas para registrar e categorizar dados inúteis sobre suas fixações nerd, atividade que não o leva, nem leva seu país, a lugar algum (tabulação é uma das características que melhor caracteriza um otaku hardcore – não a toa o livro do Azuma chama-se ‘Otaku: Japan’s database animals’).

Cornelius

Vamos lá, passagem do séc. XX ao XXI, esforço governamental para a popularização do Cool Japan e uma geração de jovens imaturos criadores. Podemos, finalmente, entrar onde interessa. O Manifesto Superflat de Takashi Murakami.

SUPERFLAT

“O que aparentemente era entendido apenas como entretenimento ou depravação acabou por revelar espaço importante para reflexão e manifestação de ideias. Quando o artista Takashi Murakami lançou seu manifesto Superflat, em 2001, o mundo passou a compreender as experiências otaku ou o mundo dos nerds sob um viés politizado. A exposição de suas obras em Nova York (Little Boy: the arts of Japan exploding subculture, 2005) retomou a Segunda Guerra e as bombas atômicas, identificando os japoneses, desde então, como portadores de ‘membros fantasmas’ que não seriam propriamente braços e pernas amputados, mas princípios dilacerados. Little Boy era codinome da bomba atômica que explodiu em Hiroshima (…). Desde então a questão mais complicada passou a ser como olhar para frente sem tentar erradicar a história ou como conviver com a noção de sujeito individual, importada do Ocidente, sem perder o sentido da coletividade” Christine Greiner

Superflat [supercompactação/supernivelamento/superachatamento] não é apenas um estilo artístico do criador Murakami, ou o nome de uma exposição em particular, mais do que isso (já que abarca também esses fatores), é uma teorização sobre a produção e o consumo de arte no mundo globalizado que surgiu com a queda da URSS. Movimento estético pós-moderno nascido nas artes plásticas japonesas, parte do pressuposto de que o mundo está bidimensional.

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O Superflat, em termos estéticos, é uma criação que faz ponte entre a arte clássica japonesa (já que perspectiva e outras técnicas desenvolvidas na Europa medieval ainda não eram conhecidas) e a cultura pop do Japão. Dito de outra forma, ela faz construções com o imaginário otaku (animes, mangás e games), utilizando algumas técnicas e estéticas que consagraram a arte japonesa pré-ocidentalização (não exclusivamente, já que os mangás foram imensamente influenciados pelas técnicas ocidentais). Suas obras são propositalmente artificiais, sem profundidade aparente. Parecem ilustrações publicitárias criadas por designers gráficos. Atraente e de fácil consumo, a arte Superflat, nas palavras da curadora Catherine Taft, tem muita força por dar a impressão de que oculta algo do espectador. Por trás das suas imagens pop e descartáveis, às vezes grosseiras e de mau gosto, esconde-se algo perturbador e provocativo. Porque realmente tem. Como defendeu o curador na exposição de Los Angeles, Michael Darling, Murakami ficou famoso por colocar sentido em produtos comerciais superficiais e vender isso aos adultos por milhões de dólares.

“O mundo do futuro pode ser como o Japão é hoje – Superflat. Sociedade, costumes, arte, cultura: todos estão extremamente bidimensionais” (T. Murakami)

Chiho AoshimaO Superflat, em termos conceituais, turvou as fronteiras entre a ‘alta arte’ e a cultura popular, entre local e global, Japão e EUA, modernismo e pós-modernismo, real e virtual, capitalismo e arte, leste e oeste, analógico e digital. Todas estas coisas estariam niveladas, supercompactadas e indistinguíveis no mundo contemporâneo, como um hambúrguer cultural. Tudo no mundo está processado, prontamente disponível para ser digerido com igual facilidade, mas também está achatado e sem profundidade. Carregam consigo apenas odores daquilo que um dia lhes caracterizavam. Assim é a provocativa arte de Murakami: flat, como a tela do computador que produz arte no mundo de hoje. Flat, como ficaram as cidades de Hiroshima e Nagasaki após os ataques nucleares. Isso fica muito claro quando ele coloca suas esculturas plásticas multicoloridas em exposição no opulento Palácio de Versailles na França, símbolo da realeza e da alta cultura europeia. Murakami é um teórico da arte, publicou livros como The Art Entrepreneurship Theory e Art Theory Battle, e tem muito a dizer sobre o atual estado da sociedade japonesa.

“A superfície lisa do Superflat é um terreno de contestação, marcando tanto a ausência de divisões hierárquicas entre a arte e cultura tradicional quanto a presença de múltiplas estruturas que demarcam os diversos contextos culturais, políticos, sociais e históricos aos quais o Superflat se insere à medida que circula globalmente” (K. Sharp)

murakamiversaillesMais do que denunciar o nivelamento do Japão, e de certa forma de todo o planeta, o manifesto Superflat tem uma proposta destrutiva e reformadora que direciona seus canhões ao mundo da arte japonês (e por isso mesmo jamais concordaria com críticos de arte como Jerry Saltz que afirmam Murakami como um simples vendedor de sensações visuais). Crítico ferrenho da arte moderna japonesa (kindai bijutsu), Murakami delata seus conterrâneos por se apropriarem – de maneira malfeita e incompleta, ainda por cima – dos conceitos e instituições da arte ocidental no período Meiji (1868-1912). Técnicas, materiais, a noção de museu, escolas de arte e o próprio conceito de arte do Oeste (todos diferentes das japonesas) foram importados e assimilados sem maiores critérios e considerações pela tradição artística nacional. Murakami veria no mangá, no anime, na moda e no design gráfico do Japão atual a beleza e a originalidade artística do passado, sumariamente descartadas pela arte moderna do país. A crítica não é ao padrão da arte ocidental em si, mas à absorção acrítica dela por parte dos japoneses.

Murakami e seu manifesto são híbridos. A pop-art americana é sua grande influência, enquanto Andy Warhol e Jeff Koons são referências declaradas do japonês. Ao mesmo tempo, ele se formou na Geidai e foi o primeiro Ph. D em nihonga na história do Japão (nihonga é a produção de arte que segue as convenções estéticas e materiais japonesas pré-ocidentalização). Com proposta global, fez grandes esforços para internacionalizar sua arte e os produtos manufaturados produzidos em seus estúdios, que levam o carimbo da sua valiosa marca. E conseguiu. Murakami levou sua arte para Los Angeles, Nova Iorque, Paris, Bilbao, Londres, Veneza e Frankfurt. Dono de forte veia comercial, 70% de suas obras foram comercializadas no Ocidente, e não no Japão.  Ele globalizou sua arte não apenas porque gosta de ganhar dinheiro com isso, mas porque isso também faz parte do seu manifesto.

Parceria comercial com a marca Louis Vuitton

“Quando os produtos e costumes pop saíram do Japão, tornaram-se independentes do contexto em que foram concebidos, e, na maioria das vezes, passaram a ser embalados na estética da mera diversão. Murakami fará uma crítica à sociedade japonesa consumista, e ao mesmo tempo mostrará como uma nova geração de artistas poderia valer-se do próprio mercado e dos meandros da política cultural para construir um novo pensamento, aliando arte e consumo” (Christine Greiner)

Ao crescer junto a outros artistas que foram identificados como representantes do neo-pop, Murakami, segundo leitura de Noi Sawagiri, parodiou o infantilismo da cultura de consumo japonesa do pós-guerra. Eles remixavam e faziam sampling (atitude 100% pós-moderna, não?) usando as referências da cultura junk com a qual os japoneses preencheram suas vidas pacíficas e dependentes dos EUA. Os americanos criaram o novo Japão com a cultura pop fazendo o papel do cimento que pavimentava o futuro e amaciava os nativos (outrora ensinados pela lógica militarista do Império Japonês). Inundaram a vida dos japoneses com seus enlatados culturais. Os japoneses gostaram. Não só gostaram como aprenderam a fazer o mesmo. Com o Superflat sendo apresentado no exterior, Murakami devolveu a cria aos criadores. Ele pegou todo o entulho cultural que despejaram no Japão, reprocessou, prensou tudo até deixá-lo flat como fazem os caminhões de lixo, e enfiou num container destinado aos Estados Unidos. Sua exposição encheu Nova Iorque com imagens de menininhas pré-púberes perigosamente seminuas, sugestivos cogumelos (atômicos), flores sorridentes e uma gigantesca estátua de um jovem ejaculando. Foi a vez dos americanos. Eles adoraram. Gastaram fortunas comprando as obras e os produtos confeccionados nos estúdios do Murakami. E a cobra acabou mordendo o próprio rabo.

Little Boy

“Não seria exagero dizer que a constituição feita pelos americanos [imposta ao Japão em 1945] impediu a nação de tomar uma postura agressiva e forçou o povo japonês no sentido de uma mentalidade de dependência sob a proteção militar dos Estados Unidos. No entanto, por mais justa ou injusta que tenha sido a posição americana na época, ela lançou o Japão ao papel de uma ‘criança’ obrigada a seguir a orientação ‘adulta’ dos Estados Unidos” (T. Murakami)

Provocações a parte, a cama já estava montada. Mais do que depositar no Japão sua cultura, o governo americano foi um pai muito rígido para os japoneses. Na visão de Murakami, infantilizou o país ao impedi-lo de desenvolver suas Forças Armadas numa região abarrotada de potências bélicas (os nucleares China, Rússia, Índia, Paquistão e agora Coreia do Norte, além do poderoso exército sul-coreano), sendo que o país ainda tem disputas territoriais em andamento, como as ilhas Curilas com a Rússia e as ilhas Senkaku com a China. Quando uma disputa retórica ameaça ferver o Pacífico, principalmente agora que a Ásia está se tornando o centro geopolítico do mundo, o Japão precisa correr para o colo dos americanos.

Shinzo Abe a o polêmico 731

Ben Hamamoto enxerga essa mesma infantilização, mas com outras lentes. Os americanos poderiam transformar o arquipélago num gigantesco pasto após a Rendição Incondicional se assim desejassem (e muitos queriam), mas por questões estratégicas colocaram o Japão na direção do progresso material. Mais do que isso, não levaram o Imperador ao julgamento das cortes internacionais para ser avaliado por crimes de guerra pelos quais foi responsável, permitindo assim que o Japão silenciasse sobre seus abusos militares – privilégio não concedido aos demais países derrotados, sobretudo Alemanha e Itália.

Esvaziaram a memória histórica do povo japonês. Não pense no passado, aproveite o seu presente que é próspero, ensinaram às crianças do Japão. Esse mindset, o excesso de paz física do pós-guerra e a dependência geral em relação aos EUA teriam ajudado a criar uma mentalidade mimada, dependente, frágil e pueril no Japão – amplamente disseminada pela cultura pop e agora ironizada pelo Superflat. Os artistas ligados ao movimento não vivenciaram a guerra ou seus momentos de reconstrução, mas são testemunhas vivas de um processo radical de ocidentalização e a conseqüente dificuldade de fixar uma identidade numa atmosfera tão fluida.

“Renderizar um país através de uma figura bidimensional fofinha também proporciona uma forma de mascarar o cadáver ensangüentado do cachorro que é o Japão Imperialista  [referência ao personagem Maromi do anime Paranoia Agent]. Experiências com humanos (incluindo vivissecções sem anestesias), rapto de mulheres para servirem de escravas sexuais, e o infame Massacre de Nanquim; todas essas coisas escondidas debaixo do olhar tolo da Hello Kitty. O Japão foi também um participante extra-oficial na Guerra do Vietnã, Guerra da Coreia e nas Guerras do Iraque. Ainda sim o Japão é visto como inocente e pacífico.” (Ben Hamamoto)

Propaganda do Império Japonês

Essa ideia é poderosa. A arte criada nos tempos do Cool Japan frequentemente remete à cultura das garotas. Seja ao dar espaço para a criação delas próprias, seja ao pintar a fantasia do que é a cultura infanto-feminina que brotava das cabeças dos homens otaku envolvidos com o Superflat (obcecados pela juventude e frescor delas). Cores chapadas, meninas virginais e vulneráveis, mas ao mesmo tempo um pouco ressentidas e violentas – um quadro freqüente na arte contemporânea japonesa. Murakami reuniu algumas dessas meninas (Aya Takano, Chiho Aoshima e Mahomi Kunikata) sob a sua bandeira Superflat na exposição Tokyo Girls Bravo, que foi levada da capital japonesa à costa oeste americana. No catálogo, artes pueris, fotos das artistas remetendo à mocidade (ainda que algumas delas já beirassem os 30 anos), mas com descrições textuais duras: relatos de angústias existenciais, perversões sexuais e violência. Kunikata levou isso além e foi mais direta na exploração destes elementos. Essas meninas eram, sob qualquer perspectiva crítica, amadoras. Murakami as empacotou como o melhor da arte contemporânea japonesa. O mundo comprou a ideia.

Mahomi Kunikata

Em sua escola de arte (GEISAI), Murakami trouxe para baixo de sua tutela esses jovens insatisfeitos com o intuito de destruir o sistema de arte vigente no Japão. Em seus estúdios KAIKAI KIKI, em Tóquio e no Brooklyn (EUA), a produção de arte e dos artigos colecionáveis com a marca MURAKAMI, como chaveiros e camisetas, funciona em regime fordista. Seu papel na história da arte mundial ficará marcado pela forma como ele trabalhou o branding (a gestão da marca pessoal) da sua produção criativa, unindo conceito artístico e sanha comercial. Foi um dos precursores, no mundo, da arte na era da internet 2.0 (banda larga, 3G, blogging, wiki, redes sociais, fóruns de discussão, scanner pessoal e proliferação dos softwares de edição de imagens). Sua arte funciona bem, talvez até melhor, fora das galerias. Pode ser consumida e distribuída na tela do PC. Vendida em chaveiros, cadernos e bolsas – mesmo as Louis Vuitton (afinal, o mundo está flat). A reprodutibilidade técnica elevada à potência máxima.

Confecção no Kaikai KikiLocalmente, será lembrado pela sua tentativa de desconstruir o sistema de produção e comercialização de arte no Japão. Lá, a arte clássica ainda é muito forte, conta com mão-de-obra qualificada, amplo financiamento, escolas conceituadas e orientação teórica voltada ao domínio absoluto da técnica. Murakami, um conceitualista, dá espaço e notoriedade para a inovação – mesmo que nas mãos de amadores. Será reconhecido também por tecer uma crítica estética ao contexto social que gerou essa superficialidade no Japão, e ao mesmo tempo como um oportunista que se aproveita dessa falta de fronteiras. Alguns críticos mais temerosos se questionam se Murakami está nos guiando ao futuro da arte ou terminando de destruí-la.

Em parte porque Murakami é sim um conceitualista (que pode talvez estar guiando muita gente ao caminho errado), mas muitos dos artistas contidos no guarda-chuva do seu Superflat não são! Na verdade alguns são otaku que vivem de reproduzir seus fetiches estéticos grotescos, e a ideia do Takashi pode acabar se diluindo lado a lado com outras obras que estão lá contribuindo apenas com o choque pelo choque, não com o choque via distorção do real para escancarar o ridículo de algo em termos críticos. Exemplifico:

My Lonesome Cowboy

“Maio de 2008 foi certamente um momento histórico para a arte japonesa. Milhares de anos de história da arte nipônica, com a sua sensibilidade estética refinada e requintada; bem como o desenvolvimento urbano dramático do pós-guerra e mudanças culturais sem paralelos em qualquer lugar durante o século XX, de alguma forma, se concentraram nisto: uma estatueta plástica de oito pés de altura se masturbando na frente de uma multidão de magnatas da classe executiva e estrelas das passarelas, a aplaudindo, no coração de Nova Iorque” (Adrian Favell)

My Lonesome Cowboy – vendido para um colecionador europeu por US$ 15 milhões (não postarei aqui sem censura) – parodia, na leitura de Sharp, a noção de autonomia e da expressão subjetiva da Modernidade Ocidental, claramente expressa em artistas como Jackson Pollock. A estátua era apresentada a frente de uma tela chamada Milk, onde o estilo splash de Pollock é emulado (Expressionismo Abstrato), mas os traços caóticos são feitos referenciando o sêmen da estátua. A obra também faz escárnio com os otaku (acusados de praticar o ‘ato’ com muita freqüência), faz referências ao ukiyo-e de Katsushika Hokusai e aos animes (dinamismo estático), além de brincar com os clichês do pop japonês (cabelo estilo Goku, o jato simulando a energia emanada por um personagem do gênero shonen, a confiança do protagonista etc).

My Lonesome Cowboy é considerado um caso raramente feliz de casamento entre conceito e forma, apesar do aspecto burlesco de mau gosto aparente. Já outros artistas Superflat como ‘Mr.’ parecem mais dispostos a apenas explorar suas fascinações, produzindo sempre sob o perigoso véu do ‘Lolita Complex’. Um exemplo é a ilustração 15 Minutes from Shiki Station (a censura é minha, vocês sabem o que ela esconde):

15 minutes from Shiki Station

O discurso ou posicionamento Superflat, diretamente influenciado pelos mangás e animes, foi posteriormente absorvido por eles em títulos como Paranoia Agent [de Satoshi Kon] e Puni Puni Poemi [de Shinichi Watanabe]. Sayonara Zetsubou Sensei [Adeus, professor desesperado] de Koji Kumeta, no entanto, talvez seja a expressão máxima do conceito aplicado ao pop comercial. No título, um professor extremamente pessimista, que vê em tudo um motivo para o suicídio, dá aulas em uma classe repleta de personagens derivativos dos clichês do pop japonês: tem a hikikomori, a certinha, a possuidora de um otimismo cego, a menina machucada com tapa-olho (Rei Ayanami quem?), entre outros. Ainda não li o mangá, portanto tomarei o anime como base de análise.

No fragmento de um episódio chamado ‘A estudante ilegal’, Mari-san, uma imigrante ilegal vinda de algum canto misterioso da Ásia, se encanta com o maravilhoso Japão, onde as pessoas são gentis, generosas e tratam bem as crianças. SZS está, na verdade, demolindo o Cool Japan e nos lembrando que o Neo-Japonisme é propaganda. Enquanto ela elogia os japoneses por tratarem bem as crianças, as imagens nos mostram um pedófilo abordando uma menina, num país cujo padrão de beleza padrão é o infantilismo (NÃO ESTOU DIZENDO QUE OS JAPONESES SÃO PEDÓFILOS). Quando ela sai de cena dizendo “É um bom país, eu gosto dele!”, rodeada pelo belíssimo despetalar das cerejeiras, paisagem tão usada nas propagandas de turismo, ao fundo podemos ver que há um casal de nativos se suicidando por enforcamento em um dos galhos destas árvores (num país com media de 30 mil suicídios por ano). Maria-san, encantada demais, não percebeu que por trás de tanta beleza há um país como outro qualquer, com inúmeras qualidades, mas também com sérios defeitos. Você pode ver a cena legendada em inglês clicando aqui.

Sayonara Zetsubou Sensei

YOSHITOMO NARA

Se há no Japão algum artista que compartilha com Murakami o mesmo faro comercial, ele se chama Yoshitomo Nara. Com uma distinção. Diferente de Murakami, que alcança cifras inéditas para um japonês, mas cujo faturamento flutua muito de acordo com as especulações no mundo da arte e as crises econômicas, Nara obteve um sólido reconhecimento financeiro com a chegada de sua maturidade artística. Suas produções estão ficando progressivamente mais caras, de forma consistente, sem flutuações. Antenado, produz o que sabe vender, sobretudo nos mercados asiáticos.

Yoshitomo Nara2

Iniciou sua carreira artística na Alemanha, mas alcançou sucesso nos EUA, Japão e Coreia do Sul (onde é um fenômeno e constante vítima de pirataria). Ganhou notoriedade primeiro com um livro ilustrado, In the Deepest Forest, mas se tornou um dos grandes com suas pinturas de crianças (olha elas aqui de novo). Geralmente pequenas, indefesas, por vezes com aspecto tristonho. Em alguns quadros, elas estão armadas ou com feições de raiva e medo. Sua obra costuma ser interpretada como o registro do sentimento de desesperança e frustração que os jovens japoneses degustam, isolados, numa sociedade hiper-conectada pela tecnologia.

Yoshitomo Nara

Ele desconversa. Diz que as crianças são apenas auto-retratos (de um homem que já passou dos 50 anos). Brinca que as pessoas entendem mais da arte dele do que ele próprio. Nisso difere muito de Murakami, não é um conceitualista, não pretende reformar nada, apenas quer viver de sua arte. De todo modo, a estética rígida de uma eterna adolescência, que ele continua pintando por incontáveis anos, foi um prato cheio para os públicos sul-coreano e japonês. Geralmente associado ao movimento Superflat, Nara foi também um dos principais nomes do Micropop, do qual se desvinculou posteriormente.

MARIKO MORI

Mariko Mori seguiu um caminho muito diferente daquele galgado por Murakami e Nara, aliás, por quase todos os aspirantes ao mundo da arte, com suas intrínsecas dificuldades financeiras. Ela pertence a uma das famílias mais ricas do Japão. Estudou moda em Tóquio (Bunka Fashion College de Shinjuku) e arte em Londres e Nova Iorque. Sua posição social lhe garantiu contatos privilegiados e condições materiais raras para um iniciante.

Mariko Mori1

Obteve sucesso ainda nos anos 90 com seus trabalhos fotográficos, nos quais atuou como modelo. Em Love Hotel (1994, quando o Japão começava a discutir sobre o enjo kosai) ela se metamorfoseou em uma ciborgue… Vestida de colegial numa cama de motel. No mesmo ano se fotografou como uma idol em Birth of a Star. Na época sua obra discutia o papel da mulher na modernidade das metrópoles japonesas.

“Sua arte é uma síntese de opostos: realidade e fantasia, seriedade e humor, homem e máquina, tecnologia e natureza, ciência e religião. Assim como o Xintoísmo e o Budismo coexistem no Japão, essas bipolaridades, como uma síntese entre Oriente e Ocidente, também se manifestam nas obras de Mariko Mori” (Kunsthaus Bregenz, galeria austríaca)

Na sequência sua preocupação teórica abraça o conceito budista de conexão entre os elementos do universo, trabalhando o contraste entre a investigação lógica, típica do cenário japonês atual, com a espiritualidade tão esquecida em nossos tempos – ou, nas palavras de Gwen Kuo “a justaposição de modernidade tecnológica com mitologia tradicional”. Essa ideia permeou obras como Burning Desire (1996-98), Dream Temple (1997) e Kumano (1998). Dream Temple, para comentar uma obra, é um templo multimidiático de aspecto high-tech, onde os visitantes aproveitam sensações audiovisuais muito elogiadas.

Oneness no Brasil

Enlightenment Capsule (1998) consiste em uma flor de lótus transparente feita de cabos de fibra ótica em uma cápsula de vidro. A cápsula é conectada a um sensor no teto do museu que utiliza o desvio cromático para separar os raios ultravioletas e infravermelhos dos raios da luz solar. A luz tem uma função de dualidade material e metafísica: forças visíveis e invisíveis trabalham em conjunto para alcançar uma combinação entre ciência e espírito” (descrição em museu sueco)

Infelizmente sua arte, muito representativa na década de 90, perdeu força nos anos 2000 e ela já é estudada em termos mais históricos que atuais. Isso se deu por uma série de razões. A China tomou do Japão o papel de referência de futuro para a modernidade asiática, e as pessoas perderam um pouco do interesse pelo high-tech japonês. Outro elemento que justifica sua queda é a obsolescência de temas acadêmicos que alavancavam a popularidade da obra dela, como o pós-humanismo e o pós-modernismo.

Budismo mais Ciência

Sem contar que suas obras mais recentes tomaram proporções hollywodianas (como Tom Na H-iu), e a produção envolve engenheiros, arquitetos, cientistas (staff que inclui até mesmo um prêmio Nobel japonês) – tudo isso é muito caro, depende de patrocínio parrudo, coisa que não está sobrando no Japão. Por outro lado, esse gigantismo do aparato artístico de Mori, bem como o faro comercial de Murakami e Nara, foi o que lhes possibilitou renome internacional, defende Favell. Conforme a arte extrapolou a tela para abraçar formas arquitetônicas e digitais, envolvendo toda uma variedade de profissionais, é impossível para um artista se tornar proeminente sem apoio financeiro e organização logística (Kaikai Kiki funciona, literalmente, como uma empresa). Não a toa são os únicos três japoneses capazes de ainda competir com artistas chineses, americanos e ingleses.

ZERO ZERO GENERATION

“A experiência de amadurecer por volta de 1995 e depois foi desastrosa. Eles deixaram a escola ou universidade para um mundo economicamente abalado. As oportunidades secaram. Ninguém estava contratando. A ambição selvagem do Japão oitentista tinha desaparecido. Tóquio ainda era o destino porque a dor nas demais províncias era ainda maior, e a cultura da cidade grande forneceu o escape para a crise econômica. O melhor que eles podiam fazer era conseguir algum trabalho temporário em uma loja de conveniência e manter seus sonhos particulares presos em seus mundos internos. Os jovens japoneses que nunca conheceram os anos da bolha econômica como adultos são “A Geração Perdida” (…) Os baby boomers nasceram correndo, a Geração Perdida teve que aprender a engatinhar novamente” (Adrian Favell)

Lost Generation

O Superflat, e os artistas a ele ligados de alguma maneira, como Nara e Mori, foram apropriados pelo governo e corporações como uma ferramenta extra do Soft Power japonês, um trunfo a mais em prol do Cool Japan. O movimento terminou por monopolizar a visão do mundo a respeito da arte japonesa, generalizando-a como um grande mangá. A conseqüência disso foi que o Superflat jogou sombra sobre todos os artistas e movimentos que não estavam atrelados ao seu discurso, marginalizando-os.

As principais vítimas desse processo foram os artistas nascidos a partir de 1975, a geração que atingiu a maturidade física, intelectual e artística em um Japão que, maduro demais, já ameaçava cair do pé. Diferente dos Baby Boomers (geração do Murakami), a Geração Perdida é mais aberta às diferentes possibilidades que a tecnologia pode proporcionar a serviço de sua estética. Se distanciando assim do propagado colapso da técnica do Superflat, eles se voltaram novamente ao treino e valorização da habilidade individual.

nuclear hokusai

Testemunharam também a queda das teorias pós-modernas e pós-humanas, sendo assim pessoas voltadas a uma vida mais calma, porém concreta. Rejeitam os excessos do Milagre Japonês, responsável inclusive por mortes decorrentes do excesso de trabalho [karoshi] e pelas humilhações escolares [ijime]; bem como se afastam das teorias apocalípticas que propagam o fim do Japão, a morte da arte e da cultura. Não querem retornar ao sucesso do passado, pois ele continha falhas inerentes, nem querem dar de ombros, pois um futuro os aguarda.  Sintonizados com os novos tempos, são artistas que querem construir algo novo nos escombros daquilo que ficou para trás. Com tal missão, usam e abusam de materiais e ideias ligadas ao conceito de sustentabilidade. Após o desespero do “No Future” propagado por vozes como Superflat e Aum Shinrikyo, eles querem plantar árvores no hambúrguer do Murakami e lutar para viver suas vidas no “Post-No Future”.

THE ECHO e ‘THE ECHO – EMBORA EU AINDA ESTEJA VIVO’

“As pessoas acham que o Japão só produz anime, videogames e arte grotesca e erótica. (Michiko Ogura, um dos organizadores de The Echo – Embora eu ainda esteja vivo)

Um grupo de artistas se insurgiu contra o sistema de artes do Japão em termos bem distintos da revolta Murakamiana. Eles estavam exaustos de tudo. Da falta de incentivo dado à arte contemporânea; da predominância do discurso e da estética do Superflat; dos museus e galerias que só reuniam artistas que confirmavam a teoria de algum curador consagrado e não necessariamente exibiam a pluralidade da nova arte nipônica (ataque direto a gente como Matsui Midori e seu manifesto Micropop – sobre o qual os anglófonos podem ler mais clicando aqui).

The Echo Yokohama

Este grupo organizou uma exposição em Yokohama chamada The Echo, um show inteiramente organizado por artistas e sem curadoria. Nomes como Satoru Aoyama, Kei Takemura, Satoshi Ohno, Daisuke Ohba, Taro Izumi, Koichi Enomoto, Hiraki Sawa e Ichiro Sobe tentaram assim gritar em nome de uma nova geração, que apresentam novidades em termos de conteúdo e estilo. A intenção era apresentar ao Japão uma nova visão de criação, fazendo uso de materiais sustentáveis e oficinas de trabalho intensivo. Foram, naturalmente, ignorados pela mídia e massacrados pelos intelectuais do meio.

“No Japão não há uma tradição de arte contemporânea, isso não faz parte do nosso mundo artístico. As grandes galerias só se interessam pela arte tradicional japonesa e o sistema lá também é diferente. Só os artistas consagrados conseguem exibir, pois as galerias têm que ser alugadas e funcionam como um showroom” (Takahiro Ueda)

Sako Kojima

Medida semelhante foi tomada em Berlim com ‘The Echo – Embora eu ainda esteja vivo’. A proposta é a mesma: declarar a multiplicidade de visões, posições e estilos da arte japonesa e internacionalizá-la. Mentalidade esperada de uma geração globalizada (10 dos 17 artistas dessa mostra nasceram no Japão e moram na Alemanha). Como afirma Michiko Ogura, um dos organizadores: “Os artistas são jovens, originais, versáteis e da mesma geração. Queremos mostrar que temos orgulho de sermos japoneses, mas somos pessoas do mundo”.

Neo Tokyo Contemporaries e Síndrome de Galápagos

Alguns nomes envolvidos na exposição The Echo em Yokohama estão ligados a um dos novos movimentos denominado ‘Neo Tokyo Contemporaries’, dando apoio a inovação e artistas não comerciais. Tóquio tentou canalizar essa nova energia com a Tokyo Art Week em 2005. A ausência de estrangeiros na visitação levou os organizadores, em 2010, a realizar simpósios sobre a Síndrome de Galápagos que afeta o Japão, com foco maior no mundo da arte.

Sídrome de Galápagos faz referência ao conjunto de ilhas situadas no oceano Pacífico que reúnem uma fauna de quase 2000 espécies que evoluíram somente lá. É uma alusão também ao tablet nomeado Galapagos que a Sharp desenvolveu exclusivamente (ou ao menos visando prioritariamente) o mercado japonês. Acho que já deu para notar a acidez do termo.

Galapagos

Se no mundo analógico dos bens de consumo os japoneses dominaram a Terra com suas exportações, o advento do mundo digital fez o Japão aninhar-se no próprio umbigo. O mercado dá exemplos nítidos disso. Waichi Sekiguchi, editor do Nihon Keizai Shimbun, comenta que a telefonia móvel japonesa era a melhor do mundo. Empresas japonesas foram as primeiras a introduzir internet, televisão e GPS nos aparelhos, mas se preocuparam em atender apenas as necessidades locais e se alienaram das demandas internacionais (enquanto a Apple entendeu que o celular para as pessoas era também um artigo de design, ostentação, diferenciação e pertencimento a um grupo). Hoje as corporações nipônicas detêm apenas 5% de participação de mercado global, sendo a maior parte disso dentro do próprio Japão. Os finlandeses (Nokia, Motorola) e os sul-coreanos (Samsung e LG) têm população nacional pequena, insuficiente, portanto se voltaram principalmente aos desejos dos grandes mercados e hoje dominam o setor.

Sharp Galapagos

E eu relembro a cultura pop, já que a Hallyu sul-coreana está tomando o mercado que antes era do Japão, enquanto os nipônicos se agarram com todas as forças ao porto seguro do mercado interno – ainda rico e volumoso, mas cada dia mais inexpressivo no contexto globalizado.

O mesmo acontece quando as galerias não disponibilizam tradução do japonês em seus catálogos, atenção destinada aos visitantes internacionais que por ventura possam se interessar pela apresentação, ou quando alguns artistas se mostram desconectados das vanguardas do exterior. Como as espécies de Galápagos perdidas nas ilhas do Pacífico, segundo essa visão, os japoneses parecem bastante confortáveis em seu habitat natural, mas seriam capazes de sobreviver fora dele? Com alegria percebo que empresários, governantes e artistas já observaram essa realidade e aos poucos tomam medidas para contorná-la, e então, como defende Sekiguchi, escapar de Galápagos.

MAKOTO AIDA E Chim↑Pom

Makoto Aida

“Muitas pessoas no Japão pensam que Makoto Aida é o artista mais importante de sua geração. Mesmo assim, ele foi mal interpretado ou ignorado na Europa e Estados Unidos. Murakami sempre reconheceu que ele e Aida compartilham ideias e sensibilidades semelhantes, mas Murakami tem sido muito mais eficaz em mascarar isso com uma superfície plana e atraente. Em um de suas melhores obras, de 1996, Aida pintou Mitsubishi Zeros circulando em ‘moebius loop’ sobre uma Nova Iorque em chamas. (…) era difícil isto cair bem no Museu de Arte Moderna de NY (…) Murakami, por outro lado, veio a Nova Iorque triunfante. A mensagem subjacente estava lá. Ele nomeou seu show com o nome da bomba que destruiu Hiroshima, mencionou nuvens de cogumelo atômico e Akira. Mas transformou cogumelos em desenhos animados e encheu o show com flores felizes.” (Adrian Favell)

Se Takashi Murakami é o nome basal da arte japonesa nos anos 2000, Makoto Aida cumpriu esse papel na década de 90. No Japão é até mais respeitado que Murakami, homem que não goza de muita simpatia pública em sua terra natal. Aida, não obstante, foi uma das principais vítimas do rolo compressor do Superflat, responsável por amassar tudo o que veio antes dele no hambúrguer do achatamento cultural. Aida foi obliterado pelo sucesso do Murakami. Muito por causa da semelhança em estética e argumento de ambos. Em Mokomoko (2008, por exemplo, Aida traz a tona novamente a ideia de um povo que ainda luta para sublimar o trauma nuclear.

Perceberam a Hello Kitty no canto

“Eu queria que fosse uma fusão de três imagens: a fofura da cultura pop japonesa do pós-guerra, simbolizada por personagens como Hello Kitty; um pênis ereto; e a capacidade de destruição em massa da bomba atômica. Eu pensei que essa combinação iria simbolizar o infantilismo distorcido que caracteriza o Japão contemporâneo.” (Makoto Aida, sobre Mokomoko)

Agora que o discurso Superflat perdeu vigor e a poeira começou a cair, alguns curadores estão revisitando a história da arte para devolver ao Makoto o lugar que é dele por direito, finalmente reconhecendo sua importância para o período. Mais do que reescrever os livros de história, existe uma preocupação em apontar novos caminhos, e nessa observação descobriram uma prolífera ninhada de novos artistas diretamente ligados ao Makoto Aida. Entre eles, destaca-se o grupo Chim↑Pom.

Makoto Aida2

Chim↑Pom, nome derivado de chimpo (uma forma de dizer pênis em japonês), é um grupo artístico sem treinamento formal em artes, composto por cinco homens e uma garota na faixa dos 20-30 anos de idade, que se comportam quase como uma banda de J-rock (Ellie, Ryuta Ushiro, Yasutaka Hayashi, Masataka Okada, Toshinori Mizuno e Motomu Inaoka). A tônica do grupo se dá em intervenções urbanas provocativas, irônicas e cômicas. Suas interferências são gravadas em vídeo enquanto fazem troça com o absurdo da vida contemporânea, principalmente a toquiota. Vale a pena descrever algumas das divertidas ações de guerrilha artística do grupo.

Em Super Rat (2005) os jovens caçaram alguns ratos ariscos e resistentes ao veneno desenvolvido pelos humanos que povoavam uma região central de Tóquio. Eles mataram as ratazanas, submeteram os corpos ao processo de taxidermia e os pintaram de Pikachu. O Pokémon é kawaii, mas ainda é um rato, alerta o Chim↑Pom. Estão ironizando as meninas que freqüentam o Center Gai vestidas de Pikachu, e por tabela toda a moda urbana japonesa. Você pode ver um pequeno vídeo sobre Super Rat clicando aqui.

Pikachu girl

Black of Death (2007) tinha um alvo mais geral. Nesta intervenção os artistas saíram às ruas antes da coleta de lixo, com megafones para amplificar o som que os corvos (abundantes no Japão) usam para se reunir em bandos. Fizeram isso em locais como o Shibuya 109 (famoso local de compras), o Parlamento e a Torre de Tóquio. A ideia era fotografar uma revoada de corvos circulando logo acima de construções simbólicas do Japão. A mensagem? Excesso de riqueza também atrai corvos que chafurdam os lixos em busca dos restos. O vídeo pode ser visto clicando aqui.

Se esses dois exemplos parecem mais uma brincadeira adolescente, com Pika (2008) o Chim↑Pom revolveu a memória histórica dos habitantes de Hiroshima. Com um avião, eles picharam “ピカッ” no céu (Pika!, flash em japonês),  em cima do Memorial da Paz de Hiroshima, uma das poucas construções que permaneceram de pé após a explosão da Little Boy. Fizeram isso sem permissão ou consentimento dos habitantes de Hiroshima que se revoltaram, sobretudo os hibakusha, aqueles que sobreviveram à bomba e classificaram a ação como desrespeitosa e insensível. Curiosamente, Hiroshima recebeu muito bem os fogos de artifício do chinês Cai Guo Qiang, cujo Black Fireworks (2008) simulou, ao lado do Memorial, primeiro um cogumelo atômico; Depois, ao se dissipar, deu a impressão da chuva negra, lembrando o pé d’água radiativo que caiu horas depois da explosão em 1945. Você pode assistir a impactante queima de fogos clicando aqui.

pika

Após as catástrofes de Fukushima, o grupo se voltou para a problemática nuclear caseira, a discussão sobre a fonte energética do país e a vida daqueles diretamente afetados pela radiação em 2011: “Não há como nós continuarmos a viver como antes. Nós devemos trabalhar para fornecer oportunidades de reflexão sobre o que aconteceu”, afirmou Ellie. Criaram novas intervenções para falar do assunto, como Real Times, mas também ressignificaram obras antigas. Ao reeditar Super Rat em 2011, o Chim↑Pom fotografou os ratos em Shibuya. Ratos e humanos convivem em harmonia na cidade – ou tolerância, por falta de opção. Do mesmo modo que os cidadãos japoneses são obrigados a coexistir em casa com usinas nucleares mal administradas e com alimentos contaminados pela radiação.

O crítico Yoshitaka Mouri, em contato com as intervenções da cria do Makoto Aida, se questiona a respeito do papel da arte no mundo atual, quando os artistas mais parecem ídolos pop praticando um J-Jackass de vapor politizado e provocação vazia.

A AMEAÇA DO CONTINENTE: CHINA MANIA

O Japão entrou no século XX crente que seria o curador e porta voz da arte asiática ao mundo. Hoje percebe que a arte chinesa o deixou na sarjeta do mercado internacional. A China é atualmente o que o Japão foi nos anos 60, o mundo olha para lá com a curiosidade de conhecer uma nova alternativa de modernidade com tempero asiático. Se Neuromancer fosse escrito hoje, Gibson não situaria seu cyberpunk nas ruas marginais japonesas, mas sim nas vielas de Pequim ou Xangai. Os olhares que antes se deslocavam para a China com desdém ou mesmo nojo hoje já contêm traços de curiosidade e mesmo temor. Até onde o Dragão recém-desperto é capaz de chegar?

East is red

Quando falamos em arte, os criativos chineses recebem muito mais financiamento público do que os japoneses, principalmente quando falamos de arte contemporânea. A favorável condição econômica do país permitiu o surgimento de empresários milionários que patrocinam artistas locais como legítimos mecenas, enquanto os ricos japoneses apertam os cintos para não perder ainda mais ienes para as nações emergentes da Ásia. A numerosa classe média chinesa (os novos ricos) e o recrudescimento do interesse ocidental pelo país criaram uma verdadeira bolha de especulação no mercado da arte chinês – e onde tem dinheiro, tem museu interessado. Claro, sem ignorar o período árduo e recente do Maoísmo e o tema do pós-comunismo que com freqüência alimentam a imaginação dos criadores chineses (ao contrário do pacificado Japão que se abriu à tolice pop em tempos de paz extrema). Tudo isso, é evidente, sustentado por uma tradição milenar herdada do Império Chinês que confere consistência artística às obras atuais. Não podemos esquecer também que o contrabando ilegal de obras chinesas que foram censuradas pelo Partido também dá mais dinâmica ao comércio de quadros.

Ufa! Motivos e tanto para o Japão temer a concorrência chinesa. Aliás, não há o que temer, já aconteceu, o Japão ficou para trás. A arte chinesa hoje é mais criativa, fresca e dinâmica que a nipônica. Em termos comerciais, as obras dos chineses movimentam quantias muito maiores de dinheiro comparadas aos japoneses; mesmo Murakami virou café pequeno.

Coke Ai Weiwei

Numa divisão simplista, os chineses podem ser separados entre aqueles que são apoiados pelo governo, seja por fazerem arte despolitizada ou a favor do regime, e aqueles que usam a arte para atacar as lideranças políticas da China, principalmente em temas como a falta de liberdade de expressão e a tortura. Caio Guo Qiang (de Black Fireworks citado acima) é o principal nome do grupo apoiado por Pequim, ele não entende a arte como ferramenta política e sempre se cala quando questionado sobre temas espinhosos da realidade chinesa. Zou Cao, por outro lado, compra briga quando associa o Maoísmo ao leninismo em East is Red – quadro onde o rosto de Mao Tsé-Tung aparece como digitais sobre a bandeira da União Soviética.

O artista mais midiático da China é sem dúvidas Ai Weiwei. Crítico ferrenho do regime comunista, ele cumpre prisão domiciliar desde 2012 por suposta fraude fiscal (e também por isso tem muita visibilidade no ocidente, arrematando o 3º posto entre os mais influentes da arte, segundo a revista Art Review). No clipe Dumbass ele retrata ao som de heavy metal o período em que ficou encarcerado. Brincalhão, em 2012 entrou na onda viral de Gangnam Style e gravou sua versão: em certo ponto no passinho do cavalo ele não segura rédeas imaginárias, e sim algemas. Você pode ver o vídeo clicando aqui.

Ai Weiwei

Remembering (2008) é sua obra mais visceral. Em exposição na Alemanha, Weiwei empilhou 9 mil mochilas escolares num paredão. Usando cores diferentes, a muralha virou um grande painel onde se podia ler em chinês “Ela viveu feliz neste mundo por sete anos”. Frase de uma mãe que perdeu a filha no terremoto de Sichuan, responsável por matar mais de 80 mil pessoas. Weiwei avança contra os oficiais corruptos do Partido que desviaram dinheiro das obras e construíram escolas com fundações fracas, incapazes de suportam o abalo sísmico (diferente do Japão, onde as escolas eram os prédios mais seguros para se abrigar durante o terremoto/tsunami de 2011). A pilha de mochilas é uma homenagem aos milhares de estudantes soterrados nas escolas, e uma lembrança macabra das cenas do terremoto, onde mochilas se misturaram aos escombros e corpos enquanto os bombeiros lutavam para resgatar os sobreviventes.

O Japão deixou de ser interessante quando se tornou menos Cool e deixou de movimentar dinheiro no mercado da arte. Favell conclui que isso é uma perda lamentável, pois o mundo desenvolvido tem mais a aprender com um país que vive uma realidade mais próxima do decadente “welfare state’ europeu do que com a locomotiva mandarim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Cool Japan foi soterrado pelo terremoto e contaminado pela radiação de Fukushima. Como conseqüência o Superflat foi afogado pelas águas do tsunami e virou história, não há mais espaço para suas ideias e estéticas. O projeto de se autodenominar ‘legal’ do governo japonês está fracassando como o Cool Britannia, que já virou motivo de piada na Inglaterra. A visão do Japão perante o mundo se alterou profundamente em 11 de Março de 2011. O impacto do terremoto, tsunami e acidente nuclear fez o mundo olhar com mais atenção para um país que patina na deflação há quase duas décadas e não é mais visto como vanguarda do mundo tecnológico, da modernidade ou do “Século Asiático”, como alguns definem o atual.

Fukushima

O mundo descobriu que o Japão está com a economia e com as lideranças governamentais estagnadas no paroquialismo político, que a população envelhece rapidamente e não se renova, que os índices de suicídio são alarmantes, que a pressão escolar ainda é insustentável, e que o país como um todo está sendo derrotado, em vários setores, pelas sociedades chinesa e coreana. O interesse pelo Japão perdeu força, e o Cool Japan dá pinta de que será esquecido e jogado na lixeira junto com a Década Perdida que o pariu.

O Japão encontra dificuldades de transformar sua cultura pop em Soft Power e, mais ainda, numa política industrial capaz de substituir a manufatura de bens de consumo que serviu de locomotiva no pós-guerra. O atual governo do Shinzo Abe já percebeu isso e está fazendo esforços pela revitalização da manufatura japonesa. Novamente reconhecer que a vantagem competitiva do Japão é a excelência técnica (atenção aos detalhes). Alguns destes projetos você pode conhecer no site do governo Made in New Japan”.

“Hoje, tenho o prazer de fazer um anúncio: As pessoas que sofreram tremendamente não perderam a esperança. Em Watari, os produtores de morango se recuperaram. Eu comi o produto deles, aqueles morangos grandes e vermelhos. Eles estavam deliciosos. Na verdade, até mais saborosos, já que a fruta agora cresce com uma nova tecnologia de controle de temperatura, uma tecnologia de ponta. Este é o novo Japão: O resultado da determinação do povo somado ao conhecimento avançado. Um país que enfrentou um desafio inimaginável e renasceu. A nação, uma vez auxiliada por sua boa vontade, está agora à beira de um novo futuro” (Shinzo Abe, Primeiro Ministro do Japão)

Honda

É verdade que mangás são lidos no mundo inteiro e eventos otaku acontecem por aí, mas o país está se mostrando incapaz de rentabilizar seriamente isso (dá lucro, mas não substitui nem serve como complemento). A estética japonesa se desvinculou do país. O clichê da dialética tradição-modernidade já não seduz como antes. O mundo se cansou de olhos grandes, uniformes de colegial, meninas ingênuas e tons pastel. Não há mais espaço para a Akihabarização das galerias de Arte.

Tóquio novamente está saindo da rota global de circulação da arte.  Porém, os artistas (não necessariamente apenas os jovens) estão percebendo seu papel na criação de novas diretrizes que norteiem o futuro do Japão pós-crise e pós-desastre, o tal “Post-no future”.  Este é o trabalho de gente como Tabaimo, Kumi Machida e de curadores como David Elliott (e seu projeto Bye Bye Kitty!!!). Alguns artistas estão abandonando Tóquio e as instituições consagradas da produção artística para se instalar em escolas abandonadas do interior. Outros estão visitando as zonas afetadas pela radiação para se inspirar e inspirar as pessoas que ainda sofrem com o desastre. Enfim, muita gente no mundo da arte, dos negócios e da política está lutando por um novo Japão. E esse novo Japão não se pretende um hambúrguer de pelúcia, sarin e menininhas prensados, como pregam os apocalípticos do Superflat e da seita Aum Shinrikyo, e sim um país mais plural, dinâmico, otimista e integrado com a comunidade internacional.

por Kauê Antonio Lee

(Se você suportou esse texto até o fim, é possível que se interesse também pelo
Hallyu – A onda coreana do pop de Seul invade o mundo!)

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Fontes:
Before and after Superflat – A short history of Japanese Contemporary Art 1990-2011 (Adrian Favell)
SUPERFLAT WORLDS: A Topography of Takashi Murakami and the Cultures of Superflat Art (K Sharp)
Os corpos do J-pop (Christine Greiner)
Taboos in Japanese postwar art: mutually assured decorum (Ashley Rawlings)
Entertainment Re-oriented: Atomic Pop Pt. II: Hello Kitty and the Rape of Nanking (Ben Hamamoto)
Superflat: A Reação do Pós-Modernismo Japonês ao “Boom” Otaku (Alexandre Soares)
After the Gold Rush: Japan’s new post-bubble art and why it matters (Adrian Favell)
Bye Bye Little Boy (Adrian Favell)
Bye Bye Kitty: The Dark Side of Art in Japan (Lucy Birmingham)
Cool is not enough (Christopher Graves)
Escape from Galapagos (Waichi Sekiguchi)
Cool Japan Strategy (Modified version of the Interim Report submitted to the Cool Japan Advisory Council) (METI/2012)
Cool Japan Strategy: Singapore Program (METI)
Generation Superflat: Fashion Fusions and Disappearing Divisions in the 21st Century –(Cindy Lisica)
Micropop, and what it says about Japan (iMomus)
Ai Weiwei’s “Remembering” and the Politics of Dissent (Khan Academy)
Exposição em Berlim desmistifica a jovem arte contemporânea japonesa (Marco Sanchez)
Nihilist Moralists for a Traumatized Japan: Chim Pom’s “Real Times” (Alan Gleason)
Mariko Mori: Digital Deity of Technology and Spirituality (Gwen Anes Kuo)
Mariko Mori: Dream Temple (autor desconhecido)
http://chimpom.jp/index.html (site oficial do ChimPom)
http://english.kaikaikiki.co.jp/ (site oficial do Superflat)

Otakismo – Dez filmes japoneses que você precisa conhecer

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helterMelhor ainda se puder assistir.

Não são necessariamente os dez melhores nem os dez mais importantes ou conhecidos, são apenas alguns dos títulos do cinema nipônico que eu considero relevantes aos fãs da cultura japonesa – por razões diversas. Alguns foram tão extraordinários para a história do cinema mundial, que são usados como referências em matérias ou artigos nas mais diversas áreas do conhecimento. Outros fazem parte do grupo das melhores coisas que o Japão produziu nos últimos anos. A ordem de apresentação não é qualitativa, nem mesmo cronológica. O único critério foi dar algum sentido no texto, e apenas isso.

Rashomon
(
羅生,1950)

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 “Ouvi dizer que o demônio vive aqui em Rashomon, fugindo com medo da ferocidade do homem”

Rashomon, de Akira Kurosawa, é um título fundamental por dois motivos. Apesar de ter sido produzido há mais de 60 anos, continua atual (e genial) em argumento e estética. Além disso, foi o filme que abriu as portas do mundo ao cinema japonês. Foi o primeiro título do país a faturar um prêmio internacional de prestígio, o Leão de Ouro em Veneza, menos de uma década após o término da Segunda Guerra, período no qual os japoneses ainda eram odiados por muitos e o Japão como um todo era visto sob um véu de desconfiança.

Baseado em dois contos de Ryunosuke Akutagawa, um dos principais nomes da literatura japonesa moderna, Rashomon mostra a história de um crime. No Japão do séc. XII, o bandido Tajomaru violenta uma mulher e assassina o marido dela. A ocorrência é contada por quatro pessoas diferentes: o criminoso, a viúva, o marido assassinado (por intermédio de um xamã) e um lenhador que observava a cena de longe, no papel de testemunha não envolvida.

“A vida realmente é delicada e passageira, como o orvalho da manhã”

Os quatro relatos são, no entanto, contraditórios entre si. Mas todos válidos, pois Kurosawa não eleva em dignidade nenhum dos discursos. Com base nos depoimentos, nunca ficaremos sabendo dos fatos objetivos do crime. Alguém está dizendo a verdade? Ou será que todos os discursos escondem algo, revelando apenas o que os envolvidos julgam interessante expor?

O impacto de Rashomon na cultura global é tão significativo, que ele é usado em textos e aulas nas áreas do Direito e da Psicologia para exemplificar questões como a credibilidade de um testemunho no tribunal. Clássico absoluto do cinema japonês, conta com a interpretação excepcional de Toshiro Mifune, que costuma bater cartão nos filmes mais antigos do Kurosawa. O filme foi lançado oficialmente no Brasil em DVD pela Continental.  Trailer do filme em inglês clicando aqui.

“- Se os homens não puderem confiar nos outros, esta terra poderia perfeitamente ser o inferno.

- Certo. O mundo é uma espécie de inferno.

– Não! Não quero acreditar nisso!

– Ninguém vai ouvir você, não importa o quanto você berre. Pense: em qual dessas versões da história você acredita?

– Nenhuma delas faz sentido.

– Não se preocupe com isso. Os homens não fazem sentido.”

Hana-Bi
(Fogos de artifício,
, 1997)

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“Oscilante entre a impiedosa hiperviolência kitaniana e as nuanças mais delicadas do amor e da amizade” Maria Roberta Novielli

Kurosawa abriu os olhos do Ocidente para o cinema japonês com Rashomon, mas levou 46 anos para outro nipônico conquistar a mesma premiação na Itália. O mérito cabe a Takeshi ‘beat’ Kitano, que em 1997 foi reconhecido por Hana-Bi. O termo em japonês significa fogos de artifício, mas é formado pelos ideogramas de flor e fogo, metáforas escolhidas pelo comediante para falar de vida e morte.

Kitano é conhecido no Japão como comediante de televisão e usualmente trabalha com os dois pés no humor negro. No cinema, as coisas são diferentes. Hana-Bi pendula entre a ternura extrema e a violência exacerbada. Na história, Nishi é um detetive da Polícia que perde o horizonte da vida quando testemunha a desolação de muitas pessoas que lhe são caras. Sua esposa descobre ter uma doença terminal. Seu amigo fica paralítico após uma emboscada da máfia e é abandonado pela família, sendo drenado pela solidão. Fatigado, Nishi radicaliza sua vida e não medirá esforços, mesmo ao custo de inúmeros crimes, em nome da vingança. Intercalando com momento de intenso carinho com sua esposa.

“Não se preocupe. Você é muito amável. Depois de tudo, meu marido morreu cumprindo o seu dever. Por causa da recessão, é muito difícil conseguir um bom trabalho, mas estou trabalhando em uma lanchonete. O mais difícil é… quando meu filho me diz que sente saudades do papai”

Hana-Bi é uma repaginação pop de elementos dos filmes de Yakuza, e pode tranquilamente agradar uma audiência que aprecia a violência de Quentin Tarantino (Kill Bill, Bastardos Inglórios, Pulp Fiction). Mais do que isso, acredito que pode ser uma boa porta de entrada para o gênero dos filmes de máfia japonesa (Yakuza Eiga), como Sangue de Vingança (Meiji Kyokyakuden – sandaime shumei, 1965) e Luta Sem Código de Honra (Jingi Naki Tatakai, 1973). Com o diferencial de ter também uma sensibilidade apurada e não ficar restrito a um festival de sangue e tiroteios. O silêncio em Kitano, que pouco fala nesse filme, muitas vezes diz mais do que a verborragia tarantinesca. Trailer aqui.

Império dos Sentidos
(Ai no Koriida,  
愛のコリーダ, 1976) (NSFW, +18)

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“Por quatro dias, carregando consigo parte do corgo de Kichi-san [pênis], Sada vagou por Tóquio. Quando foi presa, pôde ser visto um sorriso incomum em seu semblante. O caso chocou a opinião pública do Japão, e a compaixão do povo a tornou estranhamente popular. Tal acontecimento data de 1936”

Mais de quatro décadas separaram o Leão de Ouro de Kurosawa e Kitano, mas isso não significa que o Japão não produziu nada de estrondoso nesse intervalo. Ao contrário. É japonês um dos filmes mais debatidos, talvez o mais polêmico da década de 70, conhecido no Brasil como Império dos Sentidos (ou Tourada do amor, numa tradução literal). Tem o mérito de ser considerado, sem maiores contestações, o melhor filme erótico de todos os tempos. Na narrativa, baseada em fatos reais, vemos o amor obsessivo desperto pelo patrão Kichi na empregada e ex-prostituta Sada Abe. A relação, que a princípio era apenas uma inconsequente diversão “afetiva”, logo evolui numa escalada de práticas sadomasoquistas que culminam com a morte do homem por estrangulamento. Pessoas tão profundamente apaixonadas que terminam consumidas pelo sentimento, um conceito que os franceses chamam de l’mour fou.

A película tem uma exploração subversiva que vai muito além da mera pornografia. Na cena mais clássica, tropas do Exército Imperial marcham rumo à guerra, apoiadas pela população, enquanto o amante ruma no sentido oposto em direção à amante, numa alusão àqueles que não se integram na sociedade e não se comportam segundo os valores vigentes. A própria relação do casal é virada de cabeça para baixo; ele, o patrão que a conquistou com sua posição social, é sumariamente dominado pelos anseios da amante, numa sociedade com valores abertamente masculinos como a japonesa. Alguns enxergam no filme uma negação ao Japão consumista dos anos 70.

O filme tem várias cenas de sexo explícito e uma infinidade de outras situações eróticas. De modo curioso, ele é censurado até hoje no Japão. Enquanto Nagisa Oshima se tornou o segundo diretor japonês mais lembrado no Ocidente por conta deste filme (atrás apenas do Kurosawa), no Japão ele é um semi-desconhecido e sua morte passou em branco na Terra do Sol Nascente esse ano. Acho imprescindível que você saiba da existência desse filme, mas só recomendo se for um entusiasta do Cinema. Se você procura justamente a sacanagem pela sacanagem, advirto que este não é o melhor material para as suas intenções. Filme disponível oficialmente em DVD no Brasil. Você acha o trailer com facilidade no Youtube.

Kwaidan
(
怪談, 1965)

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“Um oásis de beleza perdido dentro do gênero comumente conhecido como ‘horror’ ou ‘terror’”

Até o momento citei o reconhecimento ocidental por obras japonesas mais intelectualizadas, todavia, nas últimas duas décadas, os filmes do Japão que mais se destacaram por aqui foram do gênero terror; Principalmente após adaptações americanas de produções nipônicas, como O Chamado (adaptado de Ringu), O Grito (adaptado de Ju-On) e Água Negra (adaptado de Honogurai Mizu no Soko Kara). Os filmes de terror japoneses se diferenciam pela própria forma como asiáticos e ocidentais imaginam e interpretam a existência do sobrenatural.

A onda do J-horror é muito mais antiga do que as pessoas imaginam. Sua primeira grande obra cinematográfica é Kwaidan, dirigido por Masaki Kobayashi quase quatro décadas antes de Ringu. Financiado pela Toho, foi o filme mais caro produzido no Japão até aquela época. Ele  conta quatro histórias sobrenaturais procedentes da tradição oral do folclore japonês, trazendo para a linguagem cinematográfica elementos estéticos advindos dos teatros Kabuki e Bunraku (teatro de bonecos). Segue a sinopse do DVD:

  • O Cabelo Negro (Kurogami) – Samurai desolado com a pobreza e com o sofrimento abandona a esposa para se casar com uma moça mais rica e galgar algumas escadas sociais. Anos depois, arrependido, ele retorna aos braços dela no meio da noite.

  • A Mulher da Neve (Yuki Onna) – Dois lenhadores são pegos de surpresa durante uma nevasca e são obrigados a passar a noite numa cabana abandonada. O mais jovem deles presencia o momento em que uma pálida figura feminina entra no casebre e tira a vida do colega mais idoso, passando a conviver com este segredo durante anos.

  • Hoichi, o Sem Orelhas (Mimi-nashi Hoichi) – Noviço cego residente em um monastério, que possui raros talentos musicais, é abordado pelo fantasma de um guerreiro assassinado há séculos durante uma das grandes batalhas que ele retrata em suas músicas. No entanto, suas saídas noturnas para atender ao chamado do morto não passam despercebidas de seus superiores.

  • Em uma Xícara de Chá (Chawan no Naka) – Oficial de um destacamento militar é surpreendido pela imagem de um homem na água de sua xícara. Após beber a água com hesitação, ele passa a ser assombrado pela presença do homem da xícara.

Kwaidan foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro e faturou uma Palma de Ouro em Cannes. Para uma audiência acostumada aos filmes extremos com cenas de tortura explícita e exorcismo da atualidade, Kwaidan pode parecer datado e não assustar como na época em que foi concebido, cumprindo mais um papel de suspense do que terror. No entanto, é uma obra mãe de todo um gênero que ajudou a disseminar o cinema japonês pelo mundo, merecendo a recomendação. Foi publicado no Brasil como Kwaidan – as quatro faces do medo e é distribuído pela Continental Home Video. Trailer em inglês aqui

Ran
(
乱, 1985)

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“O homem nasce chorando. Quando ele chorou o suficiente, ele morre.”

Antes que os desavisados de plantão protestem contra as adaptações americanas de histórias japonesas, é apropriado lembrar que este é uma via de mão-dupla. Prova disso é Ran de Akira Kurosawa, uma releitura da obra Rei Lear do inglês William Shakespeare, transposta ao Japão feudal. Na história ambientada no século XVI, o senhor feudal Hidetora, com a idade avançada e antevendo seu fim, resolve dividir seu reino entre os três filhos – Tarô, Jirô e Saburô. Ele não imaginava a disputa pelo poder que a decisão dele resultaria, gerando guerras e fragmentação do núcleo familiar. Ran é um olhar oriental sobre a obra do maior dramaturgo que este mundo já conheceu.

“Hidetora: Estou perdido…

Kiyoami: Assim é a condição humana”

O filme começa um pouco lento, mas ganha intensidade conforme avança. Tenha um pouco de paciência com o ritmo inicial (e com o bobíssimo bobo da corte), pois as cenas de batalha nos campos do Japão medieval são de uma beleza ímpar na cinematografia japonesa. Assim como Kwaidan, Ran (que significa caos) era o filme mais caro produzido no Japão até o seu lançamento.

Existe toda uma categoria de filmes de samurai (chanbara), mas muito do melhor deste gênero foi produzido entre os anos 40 e 60, como Os 47 Ronin (do mestre Kenji Mizoguchi, 1941), Harakiri (Masaki Kobayashi, 1962) e Os Sete Samurais (do próprio Kurosawa, 1954). São, portanto, filmes em preto e branco, com um ritmo um pouco diferente do que estamos acostumados. Ran, ao contrário, é colorido, tem uma direção mais moderna, mas ainda conta com a destreza impecável do Kurosawa na direção. Acredito ser uma introdução mais adequada ao chanbara. Aposto que após assisti-lo, você ficará com vontade de ver mais filmes ‘de espada’ (chanbara é na verdade uma subcategoria do jidaigeki do qual Ran faz parte). Distribuído em DVD no Brasil pela Universal Pictures. Trailer aqui.

Kiyoami – Não há deuses, não há Buda? Se existem, ouçam-me. Vocês são mesquinhos e cruéis! Estão tão entediados aí em cima que nos matam como insetos, para brincar? É divertido ver homens sofrendo?

Tango – Não blasfeme! Não vê que os deuses estão chorando? Eles nos observam e estão vendo que nos matamos continuamente ao longo dos tempos e não podem nos salvar de nós mesmos. Não chore! É assim que o mundo é feito: os homens preferem pesar à alegria, sofrimento à paz, alegram-se com sangue e dor!

A Partida
(Okuribito,
おくりびと, 2008)

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“É a minha mulher. Ela faleceu há nove anos. Todos os casais, eventualmente, são separados pela morte, mas é muito duro ser aquele que sobreviveu”

Produções japonesas recentes conseguiram destaque mundial também fora dos rótulos (J-Horror, Pinku Eiga e etc). Prova disso é o longa-metragem A Partida, de Yojiro Takita, que faturou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009, desbancando favoritos como Gomorra. No roteiro, a orquestra na qual Daigo Kobayashi toca subitamente se dissolve e o violoncelista se vê desempregado do dia para a noite. Sem saber o que fazer, com uma dívida adquirida, Daigo questiona-se se o sonho infantil de ser músico era realmente um sonho legítimo e, com o apoio da esposa Mika, retornam juntos para Yamagata, sua cidade natal.

Lá ele começa um novo trabalho. Bem remunerado, mas sem aceitação social. Ele se torna, no início com certo repúdio, um Nokanshi, uma espécie de agente funerário responsável pela preparação do corpo e procedimentos rituais – escondendo esse fato da própria mulher. No contato com a morte, Daigo busca o sentido para a sua vida. E daqui pra frente se desenrola um dos filmes mais afáveis produzidos nos últimos anos. Oficialmente distribuído no Brasil em DVD pela Paris Filmes. Trailer em português aqui.

Maborosi
(Maboroshi no Hikari,
幻の光, 1995)

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Yumiko: Eu apenas… Eu não entendo! Por que ele se matou? Por que ele estava caminhando ao longo dos trilhos? Essa dúvida vai e volta na minha cabeça. Por que você acha que ele fez isso?

Tamio: O mar tem o poder de seduzir. Lembre quando o pai estava pescando, certa vez ele viu um maborosi – uma luz estranha – longe no mar. Algo que estava acenando para ele… Isso acontece com todos nós.

Uma película japonesa multipremiada com uma pegada parecida com Okuribito é Maborosi, primeira ficção do documentarista Hirozaku Kore-eda. Nela, Yumiko é uma mulher com um casamento feliz, amada pelo marido e com um filho recém-nascido. Certo dia ela recebe a notícia de que seu cônjuge faleceu na linha do trem, num suposto suicídio. O choque se alimenta de um antigo trauma e Yumiko abandona a cosmopolita Osaka, dominada pela apatia e melancolia de se sentir responsável por trazer desgraça àqueles que ama.  Tem um ritmo mais lento e a expressão das emoções são bem japonesas, enquanto A Partida ainda flerta com o humor de vez em quando. Não há muito que descrever nesse filme, é melhor assistir. Vídeo aqui.

HELTER SKELTER
(
ヘルタースケルター, 2012)

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“A coisa mais fascinante sobre o estrelato [stardom] é que é um tipo de deformidade, como o câncer. Um rosto fascinante, à beira do colapso. A pele e os movimentos musculares não correspondem à estrutura óssea. Parece bom, mas está desbalanceado. Está prestes a ruir (…). Bonita por fora, mas como uma fruta devorada por insetos por dentro”

É importante quando um filme japonês toca temas humanos universais e extrapola suas fronteiras, como A Partida, tornando pequenas as diferenças culturais entre as nações. É igualmente significativo, por outro lado, quando os japoneses miram seus problemas caseiros e falam de problemas que dizem respeito ao modo de vida da sociedade deles. É o caso de Helter Skelter, adaptação cinematográfica do mangá homônimo de Kyoko Okazaki, dirigido por Mika Ninagawa.

A temática do filme não é novidade. Lilico é a grande idol do momento no sistema de entretenimento japonês – ou, a melhor idol de todos os tempos da última semana. Seu rosto estampa todas as capas de revistas. As mulheres querem ser como ela, os homens querem… ela. Toda a sua beleza, contudo, está assentada em diversos procedimentos cirúrgicos insustentáveis. Aos poucos seu corpo começa a ruir e uma nova idol – com tudo no lugar, ao menos por enquanto – toma-lhe inteiramente o fugaz destaque midiático. Daí para frente testemunhamos a derrocada do corpo e da sanidade de Lilico, cuja auto-estima estava inteiramente escorada por sua beleza física e notoriedade pública. O assunto não é novo, mas é relevante para a Ásia. Em países como Japão, China e Coreia do Sul, mais do que aqui, padrões de beleza surreais estão gerando uma epidêmica crise de ansiedade sem precedentes.

“Há uma voz dentro de mim. Tic tac, tic tac, ela diz. Dizendo-me para que eu me apresse. A voz dentro de mim diz que algo vai acabar em breve” Lilico

O filme também é irônico, pois usa a ótima atriz Erika Sawajiri para representar Lilico. A vida pessoal da Sawajiri no mundo real se assemelha muito à vida de Lilico na ficção. Começou como uma esperançosa e nínfica idol fazendo vídeos de biquíni (foi Visual Queen da Fuji TV em 2002), virou uma respeitosa atriz de doramas (Ichi Rittoru no Namida e Taiyou no Uta), e hoje faz Helter Skelter, com encenações de nudismo, beijo homossexual e sexo – enquanto sua vida pessoal é rodeada de boatos sobre consumo de drogas, além da demissão da agência de talentos por comportamento indevido. Em outras palavras, o ciclo de vida de uma idol japonesa, com sua ascensão e queda, se turva entre real e ficção. Não há mais fronteiras entre intérprete e interpretado. Diferente de alguns dos filmes citados acima, a direção é muito moderna e corajosa – ritmo incomum no cinema japonês. A decupagem é frenética e a narrativa não é linear. Os cenários são lindos e a atuação da Sawajiri rouba a cena. Além disso, tem fanservice com a protagonista de Um Litro de Lágrimas  hehe ;)  Trailer dá uma ideia do visual aqui.

Love & Pop
(
ラブ& ポップ, 1998)

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“Enquanto você está nua desse jeito, alguém, em algum lugar, está se sentindo inconsolavelmente triste”

Se Helter Skelter toca um problema fortemente nipônico, mas ainda global, Love & Pop é um filme muito interessante que trabalha todo o seu roteiro em cima de um problema quase exclusivo do Japão: O enjo kosai. Love & Pop, adaptação de um romance de Ryu Murakami (não confundir com Haruki), foi o primeiro filme dirigido pela estrela da indústria dos animes, Hideaki Anno, a mente por trás de Neon Genesis Evangelion. Nos anos 90 a crise econômica abalou o poder de compra de muitos japoneses. Várias meninas em idade escolar, para não diminuir seu padrão de consumo, passaram a participar de encontros compensados (com ou sem sexo) com homens mais velhos, conseguindo assim dinheiro para bancar itens de luxo. Alguns encontros pagos exigiam apenas que a menina acompanhasse o homem solitário até algum passeio, uma refeição ou um karaokê, onde ele poderia usufruir da presença de uma jovem por algumas horas. Outros, desbancavam para a prostituição e até abuso sexual da menor, com casos extremos de assassinato e esquartejamento. O enjo kosai foi um sério problema social do Japão na década de 90.

O filme cobre 24 horas do dia de Hiromi, uma estudante que fica encantada com um anel e resolve aderir ao enjo kosai. O filme foi um dos primeiros a serem gravados com tecnologia digital e faz uso de muito experimentalismo na escolha dos ângulos (muitas vezes geniais, por vezes amadores). Ao colocar a câmera na cabeça da atriz e captar seus reais movimentos, Anno mandou uma mensagem à juventude japonesa dos reais perigos e da depravação moral do ato. O público via a menina com as pernas abertas pela perspectiva da menina. O jogo de câmeras é sempre muito fechado e vouyerístico. Anno não te dá a opção de escolher para onde olhar, como possibilita uma tomada mais aberta. Ele fecha a câmera no detalhe e violenta o espectador, obrigando-o a assistir as cenas mais pesadas como um participante da cena. Com o filme ele tenta dialogar diretamente com as meninas que não precisavam se prostituir na então segunda maior economia do mundo. A abordagem é adolescente, afinal, esse é o target. Pela temática restrita, o filme não tem reputação nem circulação internacional, e por isso mesmo ganhou um espaço nesse post. Não achei trailer, um vídeo amostra aqui.

Otoko Wa Tsurai Yo
(É Duro Ser Homem,
男はつらいよ)

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“É inegável que há algo de ‘mesmice’ e previsibilidade nos filmes de Otoko wa Tsurai Yo, mas muito do que atraiu o público japonês aos cinemas ao longo das décadas para ver as histórias de Tora-san está na familiaridade e na saudade de um estilo de vida que seus filmes inspiram. Diferente dos atuais estilos de vida urbanos do Japão, no qual vizinhos mal se falam e salarymen e Office ladies viciados em trabalho vivem em endinheirada solidão” Cristiane Sato

Otoko Wa não é um filme, é um colosso cinematográfico. Segundo o Guinness, a mais longa série de filmes já produzida por um único diretor (Yoji Yamada). São 48 longas realizados em 27 anos pela Shochiku. Comédia de costumes tradicionalmente lançado no dia do ano novo, tornou-se um habitual compromisso das famílias japonesas nas frias viradas de ano. Seu protagonista, Torajirou Kuruma (Tora-san) é de longe o personagem mais famoso do país. Assim como no anime Sazae-san, os autores foram mantidos por décadas, e as histórias acompanhavam a evolução de vida deles.

A série de filmes segue uma fórmula batida e insistentemente reproduzida (talvez nisso resida o valor da franquia). Tora-san, como define a Sato, é tímido com as mulheres ainda que romântico, impulsivo e irresponsável, mas honesto. Pressionado pela vida, resolve viajar para algum canto do Japão (viajou para todas as províncias!). Lá encontra uma bela mulher, se apaixona, se ilude, acaba envolvido em algum problema, se desilude e volta pra casa, sozinho e resignado. Tora-san não encontra o seu amor. A série, que buscava mostrar o cotidiano, acabou sendo um retrato da evolução histórica de Tóquio. Doces, vestuário, arquitetura, penteados e relacionamentos pessoais de um mundo suburbano que foi soterrado por aço e concreto. Inexplicavelmente desconhecida fora do Japão. Trailer do 27º fime, de 1981, em Osaka.

*****

Você deve ter sentido falta de muitos títulos essenciais ou bacanas, mas a intenção aqui passou longe de esgotar a história do cinema japonês. Quem sabe em uma parte 2?

por Otakismo


Otakismo – Seis títulos imperdíveis do cinema japonês contemporâneo

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OtakismoMoviesMais recomendações cinematográficas na coluna Otakismo.

Essa é a segunda bateria de filmes japoneses que eu recomendo aos leitores do Chuva de Nanquim. Enquanto na primeira lista eu tentei indicar algumas películas representativas dos principais gêneros do cinema japonês (yakuza eiga, chanbara, J-Horror) ou com algum valor histórico (premiações internacionais), nesta eu tentei reunir apenas títulos recentes que abordam problemas ou assuntos do Japão moderno. Em outras palavras, para os iniciados no estudo do país, filmes que foram produzidos a partir da chamada Década Perdida, como ficaram conhecidos os anos 90. Portanto, não espere por filmes de Kurosawa, Ozu, Mizoguchi ou Imamura neste post.

Battle Royale

(バトル・ロワイアル, 2000)

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 “- Por que está fazendo isso?

- A culpa é toda de vocês. Vocês zombam dos adultos. Podem fazê-lo à vontade, mas não se esqueçam. A vida é um jogo. Então, lutem pela sobrevivência e descubram se são dignos dela”

Distopia, Takeshi Kitano, armas e colegiais japonesas. O responsável pela obra precisaria ser muito ‘talentoso’ para conseguir produzir algo ruim com tais ingredientes. Não é o caso de Kinji Fukasaku na feliz adaptação cinematográfica de Battle Royale. A versão foi feita em cima do livro homônimo escrito por Koushun Takami em 1999, que será lançando oficialmente no Brasil pela Globo Livros em 2014. Tem como mérito ser a obra que, segundo muitos, foi a fonte capital de inspiração – para não acusar de plágio – na criação da franquia americana Jogos Vorazes. É também o filme favorito de Quentin Tarantino e uma das referências na criação do roteiro de Kill Bill (Chiaki Kiriyama, a Go Go de Kil Bill, interpreta a Chigusa em Battle Royale).

Na virada do milênio a Grande Nação do Leste (uma referência ao hipotético governo totalitarista que tomou o poder no Japão) se encontra em um estado de absoluta anomia social. As taxas de desemprego são alarmantes e a evasão escolar se tornou uma constante indigesta. O símbolo da autoridade não impõe mais respeito em um país de milenar tradição patriarcal e hierárquica. Os adultos, temendo a desintegração social derivada da postura anárquica destes jovens, aprovam o “Ato BR” para colocá-los na linha: a lei consiste num reality show anual onde um grupo de estudantes da mesma classe é escolhido aleatoriamente no país para matar uns aos outros em uma ilha deserta e isolada, até que sobreviva apenas um. Caso isso não aconteça dentro do período de três dias, todos são sacrificados e o jogo termina sem um vencedor (se é que essa palavra faz sentido em BR).

“Escutem! É por culpa de gente como o Kuninobu que este país não presta mais. Por causa disso, os figurões se reuniram e aprovaram esta lei. Battle Royale. Então a lição de hoje é… Matarem uns aos outros até sobrar apenas um. Vale tudo”

Battle Royale captou o sentimento dos japoneses quando ‘caiu a ficha’ de que o país estava numa crise não mais temporária e sim crônica, a sensação generalizada de ver todas as portas se fecharem para o Japão – a aceitação do fim do Milagre Econômico Japonês. Os mais velhos sabiam que o país não seria mais a potência que tinha sido no seu tempo e não toleravam a postura desleixada dos mais jovens (e algumas radicais mudanças culturais provenientes da ocidentalização); estes respondiam com o ressentimento de viver em um país sem oportunidades e carente de perspectivas de futuro para alimentar suas esperanças (crise econômica, bomba demográfica, a possibilidade da chegada do temido Terremoto de Tóquio, perda da competitividade industrial).

Como filme não é uma obra de arte, é um produto de entretenimento. A atuação ao estilo japonês pode incomodar alguns e existem alguns problemas de adaptação. Mesmo assim vale muito a pena assistir. Takeshi Kitano rouba a cena no papel do professor que comanda o programa. A história também é feliz em captar a cornucópia dos – tolos – anseios adolescentes. Um misto de desejo de sobreviver, com vontade de proteger os amigos e sua amada, passando até mesmo pela resignação com a morte, contanto que lhe seja concedido a chance de desvirginar a coleguinha de classe no momento derradeiro. Na iminência da morte, todos os sentimentos – desconfiança, amabilidade, apetites, carinhos e ódios -, escondidos pela hipocrisia ou vergonha do convívio social, deixam de se esconder e mostram a face. A consciência da finitude expõe o que o ser humano tem de melhor e de pior. Paixões são declaradas, lealdades demonstradas e acertos de conta são colocados em prática. Uma boa recomendação para assistir comendo pipoca, mas também é possível penetrar algumas camadas mais profundas na análise.  Trailer em inglês aqui.

“Não temos alternativa a não ser seguir em frente. Não importa a distância, corra em busca do que você merece… CORRA!”

Kokuhaku

(告白, Confessions, 2010) 

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“Os fracos de coração magoam os ainda mais fracos. Terão eles alguma escolha para além da resistência ou da morte? Sim, vocês habitam um mundo mais amplo do que isso. Se a vida é difícil onde estão, por que não se refugiam em outro lugar?”

Kokuhaku, de Tetsuya Nakashima, foi a escolha japonesa para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2011. Não foi selecionado pela Academia, mas basta assistir ao título para compreender a opção do Japão. Kokuhaku é uma história de vingança contada de uma forma muito peculiar. A professora Yuko Moriguchi anuncia aos alunos que deixará de lecionar e faz uma declaração inusitada. Ela proclama que, a despeito da investigação policial ter registrado o caso como um acidente, a morte de Manani, sua filha de quatro anos, não foi uma fatalidade, e sim um assassinato. Detalhe: cometido por dois alunos daquela turma. A primeira meia hora do filme combina o relato da professora com flashbacks. Sem mencionar os nomes dos alunos, os detalhes fazem com que todos os demais descubram quem são os dois suspeitos. E, já que o sistema penal japonês não é capaz de punir os menores infratores, ela decidiu preparar justiça com as próprias mãos. Yuko injetou o vírus do HIV no leite ingerido pelos dois. Ao término desse depoimento, o filme se desdobra nas implicações da ação vingativa da professora.

“Manami está morta, mas não foi um acidente. A Manani foi assassinada por alunos desta turma. Qual é a proteção mais efetiva de vocês? São os seus pais? Uma arma? O aliado mais protetor e fidedigno de vocês é o código civil juvenil. Sob o Artigo 41 do código penal os menores não são criminalmente responsabilizados. Vocês não podem ser presos. Não é maravilhoso? (…) Vocês podem assassinar e saírem impunes.“

Os fãs de Kokuhaku costumam ser apaixonados pelo filme. Isto porque ele tem força em vários sentidos. As revelações da trama são oferecidas em pílulas, aos poucos, mantendo o espectador num clima permanente de tensão, sem entediá-lo. Nakamura usa tons frios, com filtros de cores para atribuir ao filme uma atmosfera nevoenta. A direção muitas vezes flerta com a estrutura narrativa dos videoclipes e a trilha sonora usa músicas da cultura pop, como Radiohead, AKB48 e KC & Sunshine Band. Além disso, aborda temas contemporâneos como Ijime (bullying), violência juvenil, transtornos mentais, apologia ao crime e a revisão da legislação do país. Se você gosta do jeito japonês de produzir suspense, este é um must watch, mas assista Kokuhaku preparado. Esta não é uma história de redenção. E assim como Battle Royale, outra vendeta adulta contra a juventude japonesa. A letra da infantilesca Milk que abre o filme já te mostra o sarcasmo com o qual ela é pintada ["now come inside me"] Trailer em inglês aqui.

“Não retribua ódio com ódio. Isso nunca trará paz de espírito. Algum dia eles irão se redimir. Acredite neles. Isso também trará a tua salvação. Foi o que Sakuramiya me disse. Até o último momento ele não parou de dizer a coisa certa. Mas eu… fui em frente”

Kids Return

(キッズ・リターン, 1996)

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“- Ma-chan, você acha que está tudo acabado para nós?

- Idiota! A gente ainda nem começou”

Quando falamos de Takeshi Kitano no papel de diretor, Hana-Bi, Dolls e Zatoichi aparecem como títulos obrigatórios. No Japão, entretanto, toda a filmografia do ‘beat’ tem reconhecimento e, entre estes títulos pouco conhecidos fora do arquipélago, está o ótimo Kids Return. O cenário inicial do filme me lembra muito os primeiros capítulos de Yu Yu Hakusho. Uma escola decadente comandada por professores acomodados e um milharal de alunos flertando com a delinqüência juvenil. Temos aqui a fatia do Japão e dos japoneses que não costumamos ver na propaganda e nos noticiários. Medíocre, abatido, conformado e desesperançado.

Kids Return acompanha o crescimento de dois destes alunos, Masaru e Shinji. Párias no colégio e sem ilusão com o futuro, eles tentam tomar as rédeas de suas existências cada um ao seu modo. Um entra para a máfia japonesa, o outro começa a lutar boxe. Só para descobrir que o Sol Nascente que simboliza o Japão não brilha igualmente para todos. Outros estudantes, sempre em duplas, têm suas vidas miseráveis mostradas em paralelo. Uns não vão para a faculdade, outros não conseguem se sustentar em seus empregos sem prestígio. O filme inteiro tem um clima amargo e ajuda a quebrar o estereótipo do cidadão japonês como um homem com uma carreira bem sucedida de assalariado em algum conglomerado. Também no Japão há potenciais desperdiçados, talentos mal explorados e um exército de pessoas sem talento algum, lutando para sobreviver da forma como podem. De modo interessante, Kitano expõe isso como um fenômeno cíclico.

“Vendam pelo menos a soma dos salários de vocês! Caso contrário, vocês são uns ladrões. Vocês não estão envergonhados? Se continuarem assim a empresa vai ir à bancarrota, mas primeiro, eu vou ser demitido. Se vocês não estão dispostos a tentar, demitam-se. Vocês podem encontrar qualquer emprego que queiram se procurarem bem”

A atmosfera depressiva de Kids Return é com freqüência recortada pelo humor negro característico dos trabalhos do Kitano, então, apesar da moldura fria, o filme poderá diverti-lo em vários momentos (o humor também lembra MUITO as piadas do Togashi em YYH). O percurso da história não é maçante e ele ainda deixa um sabor prolongado após o consumo da narrativa. Ah, a trilha sonora foi criada pelo Joe Hisaishi, autor das músicas de várias animações do Estúdio Ghibli, como Nausicaä, Chihiro, Laputa e Totoro. Um grande achado! Trailer em japonês aqui.

“Nós não esperamos que vocês dois estudem. Tudo o que pedimos é que vocês não incomodem os outros. Se vocês não conseguem parar com isso, não precisam se incomodar em voltar às aulas.”

Norwegian Wood

(ノルウェイの森, 2010)  

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- O mito de Andrômeda fala sobre um amor indestrutível e suas trágicas conseqüências…

- A Universidade de Waseda protesta. Exigimos um fim para a base americana e à Guerra do Vietnã. Nós exigimos que esta leitura seja interrompida. Temos problemas mais sérios do que as tragédias gregas.

- Não acho que haja problemas mais sérios neste mundo do que as tragédias gregas. Façam o que quiserem…

Haruki Murakami é o escritor que representa os adolescentes japoneses da atualidade. Seus livros fazem com que ele seja apontado como o favorito ao Prêmio Nobel da Literatura de 2013 nas casas de aposta britânicas. Sua obra faz sucesso por ter encontrado um nicho de mercado robusto e pouco explorado: jovens em transição entre a adolescência e a vida adulta. Murakami descreve com certo lirismo o desamparo aflitivo das personagens ainda em processo de descobertas, com seus temores, esperanças e queixas. O livro que o alçou ao estrelato no Japão foi Norwegian Wood de 1987, que vendeu quase cinco milhões de cópias no arquipélago. A adaptação cinematográfica do vietnamita Tran Anh Hung foi muito honesta e fiel ao texto original, transmitindo com eficácia o clima encontrado nas páginas do Murakami.

Inspirado na canção dos Beatles, Norwegian Wood apresenta um trágico triângulo amoroso. No tumultuado final dos anos 60 as universidades japonesas estavam um caos com as revoltas estudantis. Conservadores, comunistas e nacionalistas digladiavam entre si e todos contra as forças policiais. Neste cenário, um jovem de 19 anos, Toru Watanabe, estuda teatro na Universidade de Waseda e enfrentará uma luta que não ocorre no campo político. Solitário, conduz sua vida sem maiores ambições, apenas devorando clássicos da literatura um atrás do outro. Essa letargia sofre um chacoalhão com o suicídio do seu melhor amigo, Kizuki. Watanabe se encontrará dividido entre o amor da ex-namorada do amigo, a psicologicamente fragilizada Naoko, e da liberal Midori, conhecida da universidade que possui hábitos modernos para a época, como o corte de cabelo e a naturalidade ao falar sobre sexo.

“Que aniversário quieto. É tão estúpido quando você entra nos 20 sem estar pronto para tudo. Sabe, é estranho. Como se alguém te empurrasse”

Recomendo Norwegian Wood por uma série de motivos. É uma ambientação competente de um período importante do século XX no Japão. Geralmente vemos a revolta estudantil retratada na França, EUA e Tchecoslováquia (Primavera de Praga), mas o Japão também tremeu na época e seu governo emitiu mais de mil autorizações para a invasão policial das universidades entre os anos 60 e 70 (o Japão era usado como base para os americanos atacarem o Vietnã). Vestuários, cortes de cabelo, diálogos e hábitos são bem reconstruídos nessa película – as locações são belíssimas. Além disso, acho bacana pensar como, independente da época e da situação política, os dramas pessoais da humanidade seguem semelhantes. Claro, também pode ser uma boa introdução para você que nunca leu nada do Murakami e gostaria de conhecer uma história do escritor japonês que está conquistando o mundo com sua prosa pós-moderna. Quem sabe isso não te anima a pegar o livro depois? Trailer em português aqui.

“Yankees, caiam fora de Okinawa! Fim à Guerra do Vietnã! Saiam com a sua Declaração de Segurança! Vão embora, vão embora, vão embora!”

 

Suicide Club

(Jisatsu Club, Suicide Circle, 自殺サークル, 2002)

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“Mesmo que você pudesse morrer, a sua ligação com o seu namorado iria permanecer. Mesmo que você pudesse morrer, a sua ligação com o mundo iria permanecer. Então, por que vive?”

Jisatsu Club de Sion Sono tem uma introdução antológica. 54 garotas de diferentes colégios se aglomeram na frente de uma linha de trem e… cometem um suicídio ritual coletivo. Esta foi a primeira leva de suicídios que começam a pipocar Japão afora. O detetive Kuroda da polícia é encarregado de investigar boatos sobre um grupo que organiza os suicídios pela internet. E esta será apenas a linha de partida para os comentários sociais que este filme buscar fomentar. Alienação, onipresença midiática, modismos, virtualização da vida, niilismo e a própria problemática dos suicídios no Japão.

“Eu sou o Charles Manson da Era da Informação!”

O Clube do Suicídio é também uma boa porta de entrada para a complicada obra do realizador Sion Sono, um dos expoentes do cinema japonês alternativo. Seus filmes muitas vezes transitam entre gêneros diferentes, transmitindo uma sensação um pouco esquizofrênica ao espectador. Ele ainda gosta de flertar com conclusões surreais e isso afasta o grande público. Jisatsu Club é uma experiência estética com crítica social embutida. Se a direção fora do padrão não for um problema para você, não fuja por causa do tema. O suicídio é usado como artifício para defender o valor da vida, é um chamado à vida e uma rejeição a certos padrões de comportamento do mundo moderno e do dia a dia nas metrópoles japonesas. Vale a pena ser desafiado pelo Sion Sono. O post do @synthzoid na coluna Japanóia do blog Contraversão pode te ajudar a esclarecer alguns detalhes que ajudam na compreensão da obra [aqui]. O Trailer dele é uma porcaria, então optei por colocar o vídeo com a cena do suicídio inicial, em japonês, aqui. Sore De Wa Minna San Sayonara.

The Kirishima Thing

(Kirishima, Bukatsu Yamerutteyo / 桐島、部活やめるってよ, 2012)

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“Kirishima nos disse para pararmos com as atividades nos clubes e começar a viver nossas vidas”

O dramaturgo irlandês Samuel Beckett revolucionou a narrativa teatral no século XX com a obra Esperando Godot. Nela, dois vagabundos esgotam a vida à espera de uma pessoa – ou algo – chamada Godot, que supostamente teria um encontro marcado com eles, mas sem uma data fixa, e justificaria todo o tempo desperdiçado na espera. Eles passam dia após dia preenchendo o tempo com inocuidades, pequenas distrações ou diálogos sobre a própria miséria, no aguardo do aparecimento da figura misteriosa. Godot nunca aparece. Não se sabe sequer se ele existe. Caso exista, tampouco é possível garantir se de fato havia prometido encontrá-los. A vida de todos os personagens, mesmo assim, gira em torno da aparição e da existência de algo que nunca dá as caras. Uma possível representação da consciência do Absurdo na vida humana.

The Kirishima Thing parte de uma premissa muito semelhante (e não fui o único a lembrar da peça beckettiana).  A vida escolar de uma classe de Ensino Médio japonesa é apresentada permeando a existência de um aluno que seria o correspondente japonês de Godot, o tal do Kirishima. A narrativa começa com a informação da súbita desistência de Kirishima do clube de vôlei. Ele também passa a faltar na escola. Quem é Kirishima? Sabemos que existe, mas ele nunca aparece. A vida de todos no ecossistema escolar, todavia, é afetada pela sua ausência e a conseqüente esperança do retorno. A forma como os alunos passam a reagir à lacuna que ele deixa escancara a brutal hierarquização informal que existe nas escolas japonesas – e, por extensão, na sociedade como um todo. Evidencia como todos vivem, para além de si, limitados pelos rótulos que escolhem para si (ou são outorgados por alguém). Há os esportistas, os descolados, os otaku fracassados, os músicos, todos vivendo num tênue equilíbrio de velada desconfiança e perseguição. Essa hierarquização sofre uma erosão com o sumiço de Kirishima. Muitos corações serão partidos quando os rótulos começarem a se misturar e a estabelecer contato entre si. Novamente, a juventude japonesa não será perdoada.

Parece confuso? Sim, porque é mesmo, em todos os aspectos. Além de eu ter feito uma péssima resenha, os temas são um pouco abstratos e difíceis de captar. A direção do filme é totalmente fragmentada, apresentando as mesmas cenas por diversas perspectivas pessoais diferentes e demanda o triplo de atenção aos detalhes (algo semelhante ao filme Elefante do Gus Van Sant, ou ao anime Boogiepop Phantom). Se você tiver coragem de encarar, no entanto, a recompensa será à altura do esforço, pois Kirishima Thing foi um dos filmes mais impressionantes que assisti nos últimos anos. De modo surpreendente, apesar de ser um título muito entrópico, foi um sucesso de crítica no Japão. Filme vencedor do Japan Academy Prize de melhor filme em 2013. Trailer em japonês aqui.

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Eu gostaria de ter um feedback dos interessados. Vocês preferem foco total nos filmes mais recentes ou também querem que os clássicos sejam explorados? Há interesse em cinema coreano e chinês ou apenas japonês? Sei que faltaram muitos filmes bons e relevantes, mas, novamente, não foi minha intenção esgotar o assunto nem apresentar necessariamente os seis melhores, apenas compartilhar aos poucos o que conheço do rico e complexo cinema japonês. Mata ne.

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Otakismo – Mestres do Anime: Makoto Shinkai

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otakismomakotoshinkaiO herdeiro de Miyazaki?

Quando Hayao Miyazaki anunciou sua retirada da indústria dos animes em 2013, a mídia japonesa usou o termo 速報 para proclamar a aposentadoria do fundador do Studio Ghibli. O entendimento do valor de Hayao dentro da cultura japonesa passa pela compreensão destes ideogramas, usualmente reservados para chamar a atenção pública à chegada de terremotos. O aviso de que Miyazaki não produziria mais longas-metragens caiu no Japão como um desastre natural. No momento em que um mestre deixa o trono vago, a primeira coisa que se busca é o sucessor. Um dos nomes mais citados como prováveis herdeiros desta condição é o jovem Makoto Shinkai.

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Quem é Makoto Shinkai?

Todas as atenções se voltam ao deleite visual proporcionado pela animação que ele produz, cuja narrativa costuma ser sempre uma experiência guiada majoritariamente pelos olhos. Os diálogos em seus filmes, OVAs e curtas não costumam trazer nada de especial, a força está na destreza ímpar em manejar luzes e sombras. As paisagens aquareladas onde suas histórias acontecem nascem de esboços coloridos, padrão de trabalho incomum no nível inicial de storyboard (garranchos em preto e branco). A exemplo de mangakás como Inio Asano, ele gosta de fotografar paisagens reais do Japão para captar com detalhes o ambiente circundante e reproduzi-los em suas criações. Esmero técnico e sensibilidade estética – características quase sempre presentes na produção cinematográfica japonesa – são suas marcas registradas, acessíveis mesmo aos olhares mais leigos. A reprodução animada de cenários reais parece esconder a intenção de se mostrar mais autêntica do que a própria realidade, tamanha a profusão de cores e jogos de luzes. Personagens esteticamente genéricos, por vezes indistinguíveis, contrastam com paisagens exuberantes. É verdade que isto lhe rende algumas críticas, como a afirmação de que em certos momentos sua arte se torna kitsch devido aos excessos.

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Obsessão seria sua terceira característica. Shinkai é obcecado por certos assuntos, por alguns simbolismos e por determinadas construções visuais. Há trens em TODAS as suas animações, geralmente em movimento e interrompendo o caminho dos personagens. A linha férrea com frequência fechada para pedestres obstrui a passagem e cega o horizonte. O transcorrer do tempo e as mudanças psicológicas são expressas pelo ciclo de transição das estações. Pingos de chuva e poças d’água marcam presença constante, assim como lançamentos espaciais, céus estrelados e personagens interessados em assuntos astronômicos. Ligações telefônicas, marcas e referências ao universo do consumo, pássaros voando (muitas vezes no sentido contrário ao do personagem) e mãos apoiadas na porta do trem completam a lista de fixações imagéticas do japonês. Além disso, ele gosta de finalizar suas animações com uma música – ela geralmente ajuda a amarrar o texto, elementos essenciais são trabalhados já nos créditos -, e de vez em quando opta por trabalhar com ambientes beligerantes, onde fala sobre a condição humana em ambientes desumanizados.

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Mais do que um padrão visual, toda a obra do Makoto está amarrada a um fio condutor, isto é, de uma forma ou de outra, todos os seus títulos parecem contar a mesma história, sempre relacionada a algum tipo de relacionamento interpessoal marcado pela distância e pela ausência. Suas criações costumam ter um clima depressivo, uma atmosfera de renúncia. Ele geralmente trabalha com o ciclo do luto, onde há a insatisfação por uma perda, seguida da aceitação do mundo tal qual ele se apresenta, mas não sem o pesar de precisar abrir mão de coisas que são tão caras aos personagens. Muitas vezes este ciclo (que nem sempre se completa, o que torna Hoshi no Koe uma animação mais soturna) é acompanhado de um sentimento de inadequação, ora espacial (insatisfação com o lugar em que se está), ora temporal (flerte com a nostalgia). Isso o distancia muito dos títulos frequentemente positivos do Miyazaki, que gostava de energizar a juventude com uma abordagem mais otimista. Espírito auto-suficiente, Shinkai declara que sua obra toda é a criação daquilo que ele gostaria de assistir para se animar ou consolar.

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Creio ter passado por cima das características que saltam aos olhos no Makoto Shinkai. Abaixo, pretendo empregar uma análise que buscará pontos de convergência e divergência destes padrões em cada um das suas animações, e, claro, apontar as fragilidades de sua obra. Na conclusão, trarei a ideia de que, goste você ou não, Shinkai ajudou a mudar a indústria do anime em dois momentos e por isso merece um pouco de atenção. No mínimo.

Curtas: Tooi Sekai / Kanojo to Kanojo no Neko

“Ei, o mundo é bonito, né? Mas há algo que não posso aceitar… Que algum dia você vai encontrar sua verdadeira metade.”

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Shinkai começou sua carreira como game designer. Paralelamente ao seu trabalho na indústria dos jogos, o japonês começou a produzir curtas independentes durante seus momentos de folga, fazendo da internet sua aliada na divulgação. A primeira delas foi Tooi Sekai (Other Worlds / 遠い世界) de 1997, que você pode assistir em inglês clicando aqui  A produção ainda é precária, mas em seus menos de dois minutos, nota-se uma antecipação de temas que serão recorrentes na sua obra futura, como a separação de um casal.

Kanojo to Kanojo no Neko (She and Her Cat / 彼女と彼女の猫) de 1999 já apresenta uma evolução no cenário independente (em inglês clicando aqui). Durante seus cinco minutos, que cobrem o período de um ano, testemunhamos o desenvolvimento da relação entre um gato e sua dona, pelo ponto de vista do gato. Diferente do romance “Neko” do escritor Natsume Soseki, onde a perspectiva do gato a respeito do seu dono é acida e irônica (Shinkai estudou literatura japonesa na universidade), o bichano de Makoto é guiado pela inocência e se apaixona pela criadora, fechando os olhos para suas oportunidades.

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“A neve absorve todo o som do mundo, mas apenas o som do seu trem alcança minhas orelhas ouriçadas. Eu, e talvez ela também, provavelmente gostamos desse mundo”

Hoshi no Koe (2002)

 (Voices of a Distant Star / ほしのこえ)

“Quanto mais longe a Mikako ia da Terra, mais tempo as mensagens demoravam a chegar. E se eu… acabar me tornando alguém que apenas espera pelas mensagens dela?”

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Shinkai se enamorou com a linguagem cinematográfica criando cenas animadas para videogames. A necessidade sentida de contar uma história sua conflitava com a rotina de trabalho. Isso o fez largar o emprego e passar oito meses trabalhando sozinho em casa no projeto de Hoshi no Koe. Seus únicos companheiros de trabalho eram um Macintosh e sua esposa. O trabalho foi homérico, ele criou um OVA de 25 minutos SOZINHO em um computador pessoal. Para te dar noção do feito, tenha em mente que cada episódio de um anime produzido no Japão custa em média 100 mil dólares e envolve mais de uma dezena de profissionais. A proeza projetou o nome de Shinkai e o DVD de HnK vendeu mais de 100 mil unidades.

“Mesmo que eu tenha escrito o roteiro, desenhado os quadros e dublado as falas em Hoshi no Koe, eu não me sentia como um diretor, eu era apenas um cara na minha, fazendo algo para o meu próprio prazer. Então eu estranhei quando as pessoas se dirigiam a mim como diretor” (Makoto Shinkai)

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Hoshi no Koe apresenta uma realidade futurista onde a humanidade já havia iniciado a colonização do Sistema Solar e tinha a capacidade de explorar dobras espaciais. Tamanho avanço tecnológico colocou o Homem em rota de colisão com uma espécie alienígena chamada Tarsian, contra quem trava duelos interplanetários fazendo uso dos famigerados mechas. Para combatê-los, as Nações Unidas convocou uma série de pilotos, entre os quais figura a garota Mikako Nagamine.

O motor do plot é a troca de mensagens de texto entre Mikako e seu amigo Noboru Terao, que ficou na Terra. Quanto maiores as distâncias intergalácticas, maiores as dificuldades. A comunicação ficava limitada pela velocidade da luz e de meses passou a levar anos para alcançar seu destino. Sem ignorar o risco da mensagem sequer chegar. Enquanto Noboru seguia sua vida provinciana no Japão, Mikako se encontrava presa em uma cápsula do tempo, condenada a ser uma eterna adolescente pela falta de interação com os seus semelhantes (como Shinkai ficou solitários oito meses em seu apartamento só trocando mensagens com a esposa). Ambos, no entanto, amarrados um ao outro.

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O OVA é talvez a obra mais pessimista do autor. Seu final é ligeiramente aberto, mas dá amplas margens para uma interpretação pouco feliz. Um cartão de visitas e tanto, seja no aspecto técnico, seja no artístico. Suficiente para chamar a atenção da indústria do anime. A partir de agora Shinkai seria um profissional contratado, com verba e equipe.

Kumo no Mukou, Yakusoku no Basho (2004)

(雲のむこう、約束の場所 / The Place Promised in Our Early Days)

“Nos últimos 25 anos, a torre se tornou parte da paisagem do dia a dia, e ela simboliza muitas coisas. Nação. Guerra. Desespero. E até admiração. A maneira dela ser interpretada muda entre as gerações, mas uma constante é que todos a vêem como um símbolo de algo além dos seus alcances. Algo que não pode ser mudado. Enquanto eles acharem isso, esse mundo provavelmente não mudará”

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Este é o primeiro produto de concepção comercial do Shinkai. No título temos uma versão alternativa da História do pós-guerra. A exemplo da Coreia, o Japão havia sido seccionado em duas partes, divisão pela qual a ilha de Hokkaido passou a ser chamar Ezo e ficou sob controle da União (uma óbvia referência ao bloco soviético), enquanto o resto se manteve ao lado americano sob a denominação Aliança. O militarizado espaço da União construiu uma torre absurdamente alta que poderia ser vista a olhos nus mesmo de Tóquio. Ninguém sabia ao certo sua função, mas a desconfiança de seu sentido militar era certa.

O roteiro gira em torno de dois garotos, Hiroki Fujisawa e Takuya Shirakawa, ambos interessados pela mesma menina, Sayuri Sawatari, e empregados na indústria bélica da Aliança. O sonho dos dois era construir um avião caseiro para mirar com os próprios olhos a torre de perto (novamente, há paralelos com a produção caseira de animação do Makoto). Eles fazem uma promessa de irem juntos ao monolítico monumento dentro do espaço aéreo da União.

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Aqui há um forte discurso científico e a presença de teorias da física quântica. Se em Hoshi no Koe falamos de dobras espaciais simbolizando distâncias, aqui estamos falando de universos paralelos. Pessoalmente, não sou o maior fã deste título, mas os fãs do Shinkai costumam gostar. Não que eu veja grandes problemas, apenas não entrei na história. A meu ver sua maturidade chega com a obra seguinte:

Byousoku 5 centimeters (2007)

(5 Centímetros por Segundo / 秒速5センチメートル)

“- Ei, vai fazer os exames?

- Sim, para a Universidade de Tóquio.

- Tóquio… Entendo. Pensei que seria o que faria.

- Por quê?

- De alguma forma sempre soube que você iria a algum lugar distante”

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5cm/s é a velocidade com que a flor de cerejeira cai, e nomeia o ponto mais alto da carreira do Shinkai. Esta animação de 1h é dividida em três atos. No primeiro, ‘Flor de Cerejeira’, acompanhamos a amizade construída entre os toquiotas Takaki Tono e Akari Shinohara. Ela é apartada quando Akari se muda com a família para Tochigi e intensificada quando Takaki fixa residência no sul do Japão, em Kagoshima. O primeiro terço da animação focaliza no reencontro entre os dois após longa viagem e na sensação de que algo nunca mais seria o mesmo. O segundo arco, ‘Cosmonauta’, se preocupa com a vida de Takaki em Kagoshima e insere uma nova personagem, Kanae Sumida. O terceiro e último, ‘5cm/s’, conclui a história anos depois, mas não entrarei em detalhes para não estragar a experiência.

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Este é o título onde aquelas características enumeradas no início do texto melhor encontram execução. A insatisfação com a atual situação (Akari seguia vendo a previsão do tempo de Tóquio mesmo morando em outra província); o fluxo do tempo caracterizado pela troca de estações; o diálogo sempre comprometido pela passagem de um trem, por uma carta não entregue ou ligações telefônicas nunca completadas; e a corrida espacial usada como metáfora para os personagens: quando uma revista folheada entrega a manchete “Finalmente achou seu caminho além do Sistema Solar”, pode-se entender claramente quem é a sonda e quem era o Sol.

“Quando comecei a escrever mensagens que nunca enviei?”

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Primeiro sucesso internacional do diretor, a obra foi licenciada em mais de 30 países. Pela primeira vez aparece com nitidez a riqueza visual anteriormente citada. Como descreveu o Crítico Nippon no blog Elfen Lied Brasil,  ele faz “a câmera filmar sempre planos abertos, salientando o isolamento dos personagens”. Uma boa história, bem contada e tecnicamente diferenciada, uma união rara de forma e conteúdo. Foi feliz também na escolha musical que encerra o título, “One more time, One more chance”, que Masayoshi Yamasaki compôs em homenagem à namorada falecida no terremoto de Kobe em 1995. Caso exista um interesse no processo técnico do Shinkai, recomendo assistir ao primeiro ato no formato storyboard clicando aqui.

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Curiosamente sua história mais famosa antecipa a sua pior criação…

Hoshi Wo O Kodomo (2011)

(Children Who Chase Lost Voices / 星を追う子ども)

“- E assim, sua esposa morreu. Devastado pela tristeza, Izanagi decidiu viajar para a terra de Yomi, muito abaixo da terra, para buscar do mundo dos mortos sua falecida esposa, Izanami. Ao chegar lá ele finalmente encontrou sua esposa e ela lhe disse: ‘eu já me tornei moradora do mundo dos mortos’”

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Finalmente um longa metragem de duas horas. O início promete uma experiência espetacular. Logo de cara o espectador se depara com belíssimas imagens naturais. Uma câmera fixa na residência da protagonista acompanha, em segundos, a mudança dos horários do dia e das estações. Da noite primaveril ao ardor de um dia ensolarado de verão. Paranóicos detalhes com cores, troca de folhagens e trabalhos de luz – mesmo na incidência de uma lâmpada no piso de madeira – podem ser definidos como Scenery Porn. Infelizmente, daí pra frente a coisa desanda e este filme se torna a grande bomba na carreira do Shinkai.

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Ele abandona o tema do cotidiano e abraça o mundo fantasioso, numa tentativa de se aproximar (ou de homenagear) os trabalhos de estúdios como Ghibli e Disney. A menina Asuna e seu professor Morisaki decidem entrar no mundo dos mortos para buscar alguém que lhes é caro, numa óbvia reconstrução de vários mitos humanos, como o de Orpheu (Grécia) e de Izanagi-Izanami (Japão). O desenvolvimento, porém, é terrível. É rico em referências, mas capenga em execução. Muitos inclusive o acusam de plagiar o Miyazaki, mas não acho que seja o caso, até porque as referências soam óbvias demais para um oportunista. É apenas uma homenagem mal feita.

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O roteiro foi concebido na Inglaterra no breve período em que ele morou lá por pressão dos seus produtores. O filme tem muitos clichês. Personagens nada carismáticos apresentam comportamento esquizofrênico. Tanto quanto o roteiro, que parece sair do nada para desaguar em lugar nenhum. A tentativa era de criar algo menos japonês e falar uma língua mais universal, por isso mesmo a adoção de mitos que dialogam com diferentes culturas. No entanto o Shinkai é japonês até o osso, e creio que seu forte está menos em criar mundos fantásticos e mais em adicionar um pouco de poesia ao nosso mundo… mundano.

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Não gostei também do final escancarado, típico das produções Disneyficadas, que não deixam qualquer margem para um olhar interpretativo (relaxa, não tem spoiler aqui). O que ele apenas sugere com sutileza na última cena de 5cm/s (um sorriso que diz tudo sem afirmar nada), aqui ele te joga na cara literalmente. Ok, era uma produção comercial que custou muito dinheiro e levou 5 anos de trabalho, ele apenas jogou o jogo da indústria. E o resultado não ficou tão bacana.

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Dareka no Manazashi (2013)

(Someone’s Gaze /だれかのまなざし)

“Parece que a Aa-chan é velha demais para apreciar uma refeição com seus pais”

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Após levar muita paulada da crítica especializada, Shinkai retornou ano passado em grande estilo com esse curta de sete minutos. Se destaca um ganho de maturidade em dois aspectos. Primeiro no visual, ele mantém seu estilo, mas está um pouco mais econômico, entende que em certos momentos menos é mais. Em termos de narrativa, ele abandona os relacionamentos amorosos de adolescentes e descortina uma sensível história entre pais e filha. Ele continua fiel ao seu fio condutor – relacionamentos e distância -, mas apresenta um novo olhar sobre o tema. Você pode assistir na íntegra, em inglês, clicando aqui. (COLOCA ISSO EM HD!!)

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O conto, encomendado por uma empresa de empreendimentos imobiliários, demonstra como as atribulações do dia a dia podem desgastar os afetos. Alexandre Nagado, pesquisador de cultura pop japonesa que escreve no blog Sushi Pop, fez uma interessante observação: “normalmente, filmes publicitários de projetos residenciais mostram famílias felizes e idealizadas. Este mostra uma família que poderia ser a de qualquer um, com qualidades e defeitos, altos e baixos”. De modo curioso, Shinkai achou seu caminho de volta para casa numa peça publicitária de uma incorporadora.

Kotonoha no Niwa (2013)

(The Garden of Words /言の葉の庭)

“Honestamente, há apenas duas coisas que eu sei com certeza. Um: ela deve pensar que um garoto de quinze anos como eu não passa de uma criança. Dois: fazer sapatos é a única coisa que pode me levar para longe daqui.”

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O relacionamento amoroso volta no título mais recente da criação ‘Shinkaiana’, mas dessa vez envolvendo um adolescente de 15 anos, Takao Akizuki, cujo sonho é ser um designer  de sapatos, e uma mulher misteriosa, certamente mais velha, mas esquiva em todas as outras informações. Takao é o símbolo da nova juventude japonesa, hesitante em relação ao método escolar da era industrial, com sonhos de criar um negócio que lhe dê prazer e seja menos estressante (o lado não-radical do herbivorismo japonês). Em dias de chuva ele não suporta pegar o metrô para ir à escola, então ele vai a um parque em Shinjuku para desenhar sapatos nesse oasis verde em meio à selva de pedra da capital japonesa. Espírito livre, ele contraria o senso comum e se sente melhor em dias chuvosos. O Sol – a Deusa Amaterasu que deu origem ao povo japonês e sua tradição, segundo a mitologia – lhe passa a ideia de caminho ditado por outrem, não necessariamente o seu. Dias ensolarados apenas não lhe dizem respeito.

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Em meio à época de chuvas no Japão (junho), ele passa a ir quase diariamente ao parque, onde sempre encontra uma mulher que também mata o seu trabalho, não para desenhar, mas para beber cerveja e comer chocolate. Algo se desenvolve entre os dois tendo como  plano de fundo a chuva, que segundo o Shinkai é um personagem do filme, mesmo não tendo alma (em termos visuais, é minha obra favorita dele).

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Makoto defende que essa é a obra mais incompreendida no Ocidente. Isso porque todo o filme foi criado sob o conceito de amor. Mas não o amor que conhecemos por aqui, e os japoneses descrevem como Ai (愛), mas sim o amor escrito com o ideograma Koi (恋), que estaria mais relacionado a um sentimento de tristeza e desejo na solidão, uma necessidade física de afeto. Tanto Ai quanto Koi são traduzidos como amor, mas há sutilezas nas entrelinhas do idioma japonês que os diferenciam e os fazem ser aplicados em momentos diferentes (e o Japonês é a língua do discurso não dito, das sutilezas, do subentendido). Sinceramente, mesmo pesquisando eu não entendi direito a diferença, me peguei ‘lost in translation’, aceitei que é uma obra japonesa feita para o público japonês e azar o meu se posso apenas subaproveitá-la enquanto não sou fluente na língua.

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Por outro lado, uma coisa é clara. Os sapatos que ele desenha são os ‘passos’ que usará para construir seu futuro, caminho, farão seguir em frente apesar dos pesares. É a representação simbólica da mobilidade, do eterno fluxo, da inexorável impermanência, noções filosóficas caras ao pensamento japonês, originárias do budismo à moda chinesa. Tudo passa tudo sempre passará…

Ok, mas por onde começar?

Se você tem a intenção de assistir toda a obra do Shinkai, recomendo que faça como eu e siga a ordem cronológica de lançamento para entender como as coisas evoluíram. Se você quer ver apenas o que vale a pena, recomendo esta ordem: Dareka no Monozashi, 5cm/s, Hoshi no Koe, Kotonoha no Niwa. Eu não sou um grande fã de Kumo no Mukou e não gosto de Hoshi Wo o Kodomo, apesar de visualmente lindo. Veja se quiser. Os curtas independentes você pode assistir já após a leitura do texto. A única condição é: assista na máxima resolução possível. Se for para assistir em MP4 é melhor nem começar. Não faz sentido assistir Shinkai sem essa disposição.

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Considerações finais

Makoto Shinkai é uma montanha russa. Oscila entre o notável e o descartável. Costuma reunir fãs fervorosos e detratores raivosos. É indiscutível sua excelência técnica, bem como sua mesmice. Makoto me parece um exímio executor que tinha uma boa história para contar, e a remodelou de várias formas em diferentes títulos. Precisará se reinventar e se afirmar de modo mais assertivo como criador de narrativas se não quiser perecer como a eterna promessa da animação japonesa. Fãs mais exaltados costumam valorizar demais a beleza visual e às vezes ignoram fraquezas evidentes no resto do processo de criação.

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Por outro lado, ele carrega o peso das expectativas nas costas. Obras iniciais boas e a sombra de Miyazaki são um fardo pesado demais para um iniciante. Pessoas tentam, injustamente, demolir suas criações para demolir as comparações com um mestre da animação mundial. Não estar no nível do Miyazaki não é um demérito, na verdade é uma condição normal. Não gostar, considerá-lo superestimado e abaixo do nível do Hayao é compreensível (e eu concordo); achar que por conta disso o trabalho inteiro dele é de se jogar no lixo é um exagero dos críticos. Seus filmes estão trazendo uma mensagem importante para um povo vitimado pelos desastres naturais, como os de Fukushima em 2011: o desespero adolescente de Hoshi no Koe cedeu espaço à aceitação da impermanência dos títulos mais recentes.

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Todo mundo precisa reconhecer: ele arregaça as mangas e dá a cara à tapa. Shinkai escreve, anima, dirige, dubla, concentra várias atividades da criação nas próprias mãos e faz acontecer. Quando acerta colhe os louros, mas quando peca, assina o erro. Isso é admirável em um profissional. Sem ignorar o espírito empreendedor de abandonar o emprego para produzir animação independente (num país onde os animadores profissionais têm condições de trabalho precárias).

Por tudo isso, Shinkai marcou a indústria do anime em dois momentos. Primeiro, ele mostrou que era possível criar conteúdo CG pessoal ainda nos anos 90, alterando a percepção dos profissionais da área. Quem diz isso é Yutaka Kamada da Doga: “eu também estava convencido que isto marcou a consolidação da animação pessoal como um genuíno meio de expressão“. Uma vez contratado, Shinkai demonstrou, com seu know-how adquirido no mundo dos jogos, todas as possibilidades que a computação gráfica poderia trazer para a indústria da animação japonesa, que naquela época ainda prezava por um modelo de animação analógico ou misto. Em outras palavras, ele ajudou a inovar a narrativa no cenário independente, e a técnica no cenário profissional. Não estamos falando de qualquer um!

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Resta saber se ele será capaz de se livrar deste cordão umbilical e dar a guinada em uma carreira de diretor capaz de trabalhar com temas diversos, ou se, como pensam os mais céticos, será apenas mais um. Uma coisa é certa. Ele pode não ser um gigante, mas está sentado nos ombros de um. Se você gosta de Shinkai, agradeça ao Miyazaki e lamente sua ausência. Mas siga em frente, pois como diz Shinkai em todas as suas obras, o show deve continuar, não importa quão grande é a perda.


Otakismo – De Godzilla a Akira: O trauma nuclear no cinema japonês

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Otakismo GodzillaO impacto de uma catástrofe na arte do cinema.

“Para aqueles que mergulham abaixo da superfície, Godzilla não é um mero filme de monstro. Ele é uma espécie de paradoxo – uma realização horrível da bomba que o criou, e ainda uma penosa vítima dela; um símbolo dos arrependimentos pós-guerra e temores nucleares do Japão, e, alternadamente, a raiva e a retaliação da nação” (Steve Ryfle)

A discussão sobre o uso da energia nuclear se confunde com a história recente do Japão. Primeiro, o país amargou os únicos ataques intencionais com ogivas nucleares em contexto de guerra, agora, experimenta a intranquilidade de viver nas redondezas de uma usina danificada regurgitando toneladas de água contaminada diariamente. Em virtude da gravidade destas experiências, é de se esperar que o assunto paute a mentalidade, a existência e a produção cultural recente dos nipônicos.

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Da produção pop ao cinema documental, a cortina nuclear direta ou indiretamente alterou boa parte da cultura japonesa do pós-guerra, desfigurando seu código genético. Artistas plásticos contemporâneos como Takashi Murakami e Makoto Aida acusaram a responsabilidade das bombas de Hiroshima e Nagasaki como pivôs de infantilização da mentalidade japonesa e do esvaziamento da memória histórica do país (por ser vítima, se permitiu esquecer que por tanto tempo foi agressor).

Na cultura pop, a temática pós-apocalíptica marcou a ferro os animes e mangás, casos de Gen (Keiji Nakazawa), Akira (Katsuhiro Otomo) e Paranoia Agent (Satoshi Kon), entre tantos outros exemplos possíveis. Como bem definido por Freda Freiberg: “Akira foi concebido por e para uma geração de japoneses que não possui uma memória pessoal de Hiroshima e Nagasaki”. Ainda assim, a experiência está marcada no ‘inconsciente coletivo’ do país. Satoshi Kon, ao se referir à atual juventude japonesa, abre sua única animação episódica com a frase:  “a criança perdida é o magnífico cogumelo no céu”, associando – com acidez direcionada aos seus conterrâneos – os jovens do Japão à Little Boy, nome codificado da bomba estourada em Hiroshima, dia 6 de Agosto de 1945.

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 O cinema também teve sua cota. Gêneros inteiros foram dedicados ao tema. O Hibakusha Eiga (被爆者映画 – gênero de filmes sobre a história dos sobreviventes das bombas atômicas) e o Kaiju Eiga (怪獣映画 – filmes de monstros como Godzilla) são exemplos mórbidos, pelas suas similaridades e origens em comum, de como o retrato dos sequelados com suas quelóides tranquilamente se confundia com a história de monstros, para aterrorizar o status quo do novo Japão, próspero e pacificado após a guerra.  A semelhança inicial é tamanha que é possível citar pontos literais de intersecção entre os gêneros, como o filme The H-man, da “trilogia mutante” produzido pela Toho, mas comecemos pela gênese:

GODZILLA E O HIBAKUSHA EIGA 

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“ – Podemos viver sem a destruição? Podemos olhar para o futuro com esperança? Poderá a luz voltar a nós?”

O senso comum dita que Godzilla – Gojira (ゴジラ) no original – é um filme descartável de um monstro emborrachado destruindo Tóquio sem uma justificativa plausível. Esta até é uma leitura possível, mas tremendamente injusta com a produção de 1954, dirigida por Ishiro Honda, com efeitos especiais de Eiji Tsuburaya (que mais tarde produziria o Ultraman). Gojira originalmente não foi concebido como filme de monstro – apesar de fundar o gênero Kaiju -, e sim como um suspense.

Na história, testes nucleares desestabilizaram o habitat de uma criatura pré-histórica que vivia escondida no interior da Terra e o alteraram, tornando-o radiativo e imune às armas convencionais. Ele passa a atacar embarcações no mar do Japão e a destruir, com fúria e volúpia incontroláveis, a Baía de Tóquio. O monstrengo é na verdade, e isso foi declarado explicitamente por quem concebeu o filme, uma alegoria da bomba atômica, a personificação do temor humano em relação ao poder destrutivo das armas nucleares, e da manipulação dessa energia de modo geral, que poderiam resultar na própria extinção da humanidade. Uma forma burlesca e recreativa de trazer à baila uma temática que ainda era um tabu na sociedade japonesa e sobre o qual ninguém gostava de falar abertamente – ou não podiam, devido aos recentes métodos de censura praticados pelo governo de ocupação americano.

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Hoje, pela precariedade técnica da produção e limitações dos efeitos especiais, a mensagem original do filme pode ser compreendida apenas de modo anedótico, mas não se pode correr o risco de assistir ao Godzilla pelas lentes do anacronismo. O que atualmente parece apenas entretenimento barato, na época dialogou com os receios mais profundos da Guerra Fria. Após os ataques no Japão e ao quase uso de outra bomba atômica na Guerra da Coreia um ano antes do lançamento do filme, esta película conseguiu reunir entretenimento e crítica social, jogando luz sobre um assunto ainda restrito nas telonas. Justamente numa época em que, após décadas de sofrimento com as guerras mundiais e o Terremoto de Tóquio, o povo japonês só queria se divertir.

O insight para o conceito do filme partiu de um evento real. Um teste americano com a bomba H foi mal calculado e a área contaminada se expandiu além do previsto. Um barco pesqueiro japonês foi pego pela cortina e o operador do rádio morreu, situação que justifica a cena inicial do filme, na qual o Gojira ataca uma embarcação pesqueira e o operador do rádio é engolido pelas águas após enviar o sinal de socorro.

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“A ideia de partida para essa bem-sucedida produção era que houvesse um grande ser que devastasse tudo o que encontrasse na sua passagem, porque dotado de uma força não movida pela razão, mas sim pela brutalidade no estágio mais selvagem, gerada pelos erros humanos, e pronta a voltar-se contra os próprios homens, em particular os japoneses, aqui novamente vítimas” (Maria Roberta Novielli)

Godzilla teve um orçamento alto para os padrões japoneses da época, e só não foi maior porque Akira Kurosawa quase faliu o estúdio com a produção do clássico Os Sete Samurais. Os resultados financeiros agradaram e Gojira foi transformado numa franquia com continuações bizarras, como quando enfrentou o King Kong ou virou mecha, dando início a um dos gêneros mais rentáveis e distinguíveis da cultura pop japonesa. Virou um caça-níquel desmiolado reproduzido à exaustão até por estúdios de cinema americanos, totalmente drenado de sua substância original, mas ainda fiel ao seu papel como entretenimento. O que não se pode perder de vista é o que estava por trás da gênese do gênero.

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“Eu não posso acreditar que Godzilla era o único membro sobrevivente de sua espécie. Se nós continuarmos conduzindo testes nucleares, é possível que outro Godzilla possa aparecer em algum lugar do mundo, novamente”

É curioso, mas o sucesso de Godzilla, como o dos videogames, surgiu dos medos inconscientes da Guerra Fria para se transformar num ícone do entretenimento global. Esta, porém, não foi a abordagem principal do tema no cinema japonês. As bombas, os testes, as usinas e as conseqüências foram trabalhados de modo mais direto em outros filmes no decorrer da segunda metade do século. Ora em tom de denúncia, ora em clima de propaganda; ora com crueza, ora pincelado com sutil indiferença.

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A abordagem mais óbvia é a exposição direta e didática dos fatos. Não há títulos relevantes cujo ápice ou conclusão da trama seja a explosão, todos eles partem do desastre para escancarar o que veio em seguida com o cessar da guerra. Um exemplo antigo é Genbaku no Ko (Children of Hiroshima/原爆の子, 1952) de Kaneto Shindo. No filme, uma professora de Hiroshima que fugiu para uma ilha resolve voltar à cidade natal, onde perdeu toda a sua família, para reencontrar seus alunos – e talvez a si mesma. Com intenções educativas, o filme aborda, a partir dos casos de três alunos, alguns dos problemas enfrentados pelos sobreviventes, sobretudo as crianças: miséria, carência, doenças, fatalismo e a vontade louca de reconstruir a vida nos escombros do que sobrou, ou, ao menos, encontrar na fé a paz para deixar esse mundo com a mente serena, já que a radiação não oferece clemência (caso da menina cristã com os dias contados). A detonação, ainda no início do filme, reserva ao espectador os momentos de apreciação artística. Os ângulos e as insinuações escolhidas surpreendem pela originalidade.

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Outro exemplo, este mais recente, é Kuroi Ame (Black Rain/黒い雨, 1989), versão cinematográfica de Shohei Imamura para o livro de Ibuse Masaji, publicado no Brasil. Para transferir o espectador a outro período, o filme é rodado em preto e branco, com um clima lento, transmitindo a sensação de que ele é contemporâneo ao Genbaku no Ko. Se a professora do filme de 1952 jogou luz sobre as crianças, Kuroi Ame expõe a condição desfavorável das mulheres vitimadas, ao narrar a história da jovem Yasuko. Exposta à chuva negra radioativa que caiu em Hiroshima após os ataques, Yasuko sente na pele as dificuldades que elas encontraram para tocar uma vida normal, pois foram não apenas rejeitadas no seio da própria sociedade, mas elas próprias se rejeitaram. Abdicaram da possibilidade de se casar e ter filhos para não transmitir a maldição que caiu sobre suas cabeças.

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“Os hibakusha (sobreviventes da bomba atômica), com partes do corpo e do rosto marcados por quelóides, eram discriminados na própria sociedade japonesa como a personificação daquilo que os japoneses queriam esquecer que havia ocorrido durante a 2ª Guerra, fazendo com que os sobreviventes se tornassem duas vezes vítimas: das explosões atômicas, e do medo de que a exposição à radiação causasse mutações genéticas e danos à saúde perpétuos em seus descendentes” (Cristiane Sato)

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Segundo Novielli, italiana que estudou cinema japonês em Tóquio, existiram diretores que optaram por uma abordagem mais “pornográfica”, usando cenas de fetos deformados e das chagas da leucemia, além de direcionar críticas mais explícitas ao papel dos EUA na decisão de usar os artefatos contra o povo japonês. Ela enumera nomes como Hideo Sekigawa (Hiroshima) e os documentários de Fumei Kamio (Ikite Ite Yokatta / Sekai wa Kyofu Suru). Infelizmente fica apenas o registro, pois não é possível encontrar estes títulos na internet em alguma língua inteligível, então não posso dissertar a respeito.

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Houve ainda uma terceira forma de abordar o tema: a exploração indireta. Enquanto uns esgoelaram urros de protesto e outros partiram da bomba para fazer um registro histórico da condição humana das vítimas, alguns apenas resvalaram na bomba, não a citando nominalmente, ou tirando-a do centro das atenções, tornando-as personagens significativos, mas não mais centrais. A princípio porque a censura americana no governo de ocupação impedia qualquer menção indecorosa ao ocorrido, mas posteriormente (com o fim da ocupação) devido à própria cultura japonesa, regrada pela conformidade. Esta ‘cultura da consonância’ se reflete na língua japonesa e sua prevenção do afrontamento, sendo ela marcada pelas entrelinhas, pelo subentendido, pela leitura daquilo que não foi dito, apenas ficou implícito. Um idioma onde a palavra ‘não’ em diversos contextos sociais é um tabu, para evitar a colisão e preservar o princípio confucionista de harmonia social.

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Arthur Dapieve cita no prefácio de uma coleção de contos de Kenzaburo Oe o caso do escritor japonês (pretensamente britânico) Kazuo Ishiguro e seus romances Os Vestígios do Dia e Uma Pálida Visão dos Montes, onde a guerra mundial e o bombardeio nuclear formam um pano de fundo essencial às tramas, mas não são concretamente elaborados, são, ao contrário, nas palavras dele, “centros vazios”, simultaneamente ausentes e presentes (ah, a ambivalência da cultura japonesa…). No cinema há títulos assim, como Jun’ai Monogatari (A Story of Pure Love/純愛物語, 1957)  de Tadashi Imai. Com uma pitada de James Dean na construção, a história do casal é influenciada pela bomba, mas o artefato não é o argumento do filme. Interfere diretamente no desenvolvimento da narrativa, mas é tratada com naturalidade e imparcialidade.

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Por fim, dentro dessas três subdivisões existiu também uma tentativa de sublimar o trauma da bomba a partir da reconciliação com o passado, em filmes que adotaram um tom propagandista de um novo Japão, progressista e democrático. Não negam os conflitos militares da Segunda Guerra, mas entendem que essa foi uma conseqüência natural do choque entre o mundo e a mentalidade militarista do Japão Imperial. O importante seria cicatrizar as feridas e seguir em frente.

Por parte dos americanos esta tentativa é vista em películas como Sayonara (do Joshua Logan, 1957), que conta com atuação do Marlon Brando, um militar americano que busca a aceitação do até então condenado amor por uma artista japonesa (aceitação da união simbólica entre o militarismo americano e a ‘tradição milenar’ japonesa após anos de ódio). No Japão, o filme Não Esqueço as Canções de Nagasaki (Nagasaki no Uta wa Wasureji, 長崎の歌は忘れじ、1952), do diretor Tomotaka Takasaka, vítima pessoal da radiação, que o afastou do trabalho por cinco anos:

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“sua abordagem sobre a questão da bomba não foi nem crítica nem acusatória. É a história de uma mulher, vítima das radiações, que se apaixona por um jovem americano. Com esse relacionamento sentimental, declarava-se o perdão à América e, o mais importante, perdoavam-se as atrocidades perpetradas pelos próprios japoneses, absolvidos e redimidos justamente por terem sofrido as duas explosões atômicas. Era um pressuposto necessário para deixar tudo para trás e arregaçar as mangas para a reconstrução, enquanto pelo arquivo da história deslizava a maior de todas as tragédias experimentadas por esse povo” (Novielli)

CYBERPUNK JAPONÊS  – Ficção científica bebeu na fonte contaminada pela ‘Little Boy’

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“Qualquer coisa que se possa fazer a um rato se pode fazer a um humano.E podemos fazer quase qualquer coisa aos ratos. É duro pensar nisto, mas é a verdade. Isto não mudará com nós cobrindo os olhos. Isto é cyberpunk” (Bruce Sterling)

Cyberpunk é um subgênero da ficção científica criado nos Estados Unidos e sintetizado no aforismo ‘High Tech, Low Life’, cujo auge foi alcançado na década de 80. De modo muito resumido, a temática dele gira em torno do medo crescente em relação à corporatocracia, vigilância digital, intervenções tecnológicas no corpo e na mente humana (trans-humanismo) e diluição da fronteira entre realidade e o universo virtual. São clássicos do gênero os livros de William Gibson (Neuromancer) e Bruce Sterling, além de filmes muito populares, Blade Runner e Matrix.

O Japão se tornou, do outro lado do mundo, o segundo ninho criativo do gênero. Referência em tecnologia eletrônica e robótica, Tóquio era a capital estética do Cyberpunk, com sua metrópole apinhada de gente, arranha-céus e luzes de néon. A originalidade do cyberpunk japonês, todavia, se deu pela inédita influência da sua bagagem cultural na criação dos títulos – o que inclui as bombas. É verdade que temas mais abstratos relacionados ao ciberespaço conduzem títulos de anime, casos de Serial Experiments Lain e Ghost in the Shell, mas as obras mais veementes do cinema se alicerçam no trans-humanismo (enquanto os americanos preferem a temática do ciberespaço). Sendo mais preciso, se assentam num olhar censor e crítico às possibilidades de modificação/aperfeiçoamento humano.  As deformações físicas dos hibakusha serviram de argumento suficiente para manter o Japão com um pé atrás diante das novas possibilidades surgidas na época.

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Enquanto algumas obras globais encararam o trans-humanismo como possibilidade – o aumento artificial da capacidade física e mental que pode fazer o mal também pode ser ferramenta para combatê-lo -, os japoneses tendem a revelar os perigos da ausência de barreiras morais a partir da dissolução de tudo o que é sólido. O clássico Akira (アキラ, 1988) de Katsuhiro Otomo é fundamentalmente isso. Tetsuo é vítima de um experimento do governo que foge do controle das autoridades e do seu próprio manejo. Tetsuo e a capital japonesa são engolidos pela manipulação de uma energia que sequer é plenamente compreendida. O corpo de Tetsuo é marcado por mutações bizarras. O Cyberpunk japonês quase sempre reporta o trans-humanismo de maneira traumática, isto é, a intervenção (seja ela mecânica, psicotrópica, comportamental ou genética) não se funde ao homem, mas o possui, o transforma e o domina, levando-o à danação. A fusão é dolorida, o resultado é inesperado e o final, trágico.

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“dentro da carne de um assalariado comum, coisas terríveis começaram a aparecer”

O cinema B japonês, com baixíssimo orçamento, proveu alguns dos títulos mais assertivos nessa direção. Tetsuo, o Homem de Ferro (鉄男, 1989) de Shinya Tsukamoto levou estas mutações ao extremo. É lisérgico, perturbador, doentio e esquizofrênico. Possui poucas falas, decupagem frenética, trilha sonora composta por música industrial e experimentalismo com um toque amador. Na verdade ele parece um amontoado de videoclipes desconexos e expressionistas que ganham sentido ao final. No plot, um homem chamado apenas como Fetichista tenta fazer um implante em casa, mas sua perna refuga a prótese e em desespero ele foge correndo pela rua, sendo atropelado por um casal que, não apenas não presta socorro como, excitados pela situação, copulam observados pela presa ferida. A história segue com a tentativa de vingança do Fetichista e muitas transformações metálicas. Em um delírio onírico, o Assalariado atropelador sonha estar sendo sodomizado pela namorada, que possui um gigantesco strap-on metálico, numa óbvia visão (100% cyberpunk) do homem rendido pela máquina. É um filme para poucos, outro caso de produção trash que virou cult com o tempo.

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Há outros filmes que acompanharam a tocada extrema de Tetsuo, casos de Pinnochio 964, Rubber’s Lover e Meatball Machine, mas fiquem avisados, esse é o cinema underground japonês, e ele não preza pelo bom gosto. Há cenas de tortura, exploração sexual, excreções e constrangimento psicológico, além disso, não contam com narrativa linear, sequer lógica. Uma viagem APENAS para quem possui interesse histórico/acadêmico no gênero ou no cinema japonês (acredite em mim). Em todos, a condição humana é colocada em xeque e uma situação se desgoverna, causando aberrações e destruição. A marginalização social dos protagonistas cyberpunk se conciliou com a marginalização dos hibakusha. Em vez de quelóides, leucemia e deformações plausíveis, metais retorcidos, fluidos corporais diversos e mutações animalescas despontaram da pele dos japoneses, quando antigos traumas encontraram os novos temores da década de 80.

AKIRA KUROSAWA E O DESASTRE DE FUKUSHIMA

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“- As nuvens. Aquela vermelha é plutônio 239. Um décimo milionésimo de grama causa câncer. A amarela é estrôncio 90. Entra em você e causa leucemia. A roxa é césio 137. Afeta a reprodução, produz mutações. Faz nascerem monstruosidades. A estupidez do homem é inacreditável. A radioatividade era invisível. Por causa do perigo eles a coloriram. Mas isso só permite que você saiba qual o tipo que vai matá-lo. É o cartão de visita da morte.”

Uma comissão parlamentar no Japão concluiu em 2012, após análises in loco e entrevistas com mais de mil pessoas relacionadas, que a tragédia nuclear na usina de Fukushima foi falha humana. Documentos já antecipavam a possibilidade de instabilidades sísmicas na região de Tohoku ainda em 2006, mas nada foi feito para blindar a usina contra acidentes. O governo assumiu que foi uma catástrofe Made in Japan, ao apurar que muitos funcionários conheciam problemas de segurança, mas não contestaram seus superiores, como dita a cartilha confucionista na hierarquizada sociedade nipônica.

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No cinema, em contrapartida, a possibilidade de um grave acidente nuclear foi antecipada pelo filme Sonhos (Yume/夢, 1990) do mestre Akira Kurosawa. Um combinado de oito sonhos alegadamente reais do diretor, adaptados à Sétima Arte. Talvez este seja seu filme mais artisticamente hermético, tanto por trabalhar com imagens advindas da natureza onírica (e usar simbolismos comuns apenas aos orientais), como por ser uma representação ímpar do ritmo no cinema tradicional do Japão: lento, contemplativo, visualmente exuberante e mais preocupado em fazer pensar do que estimular a adrenalina da audiência. Portanto, os dois primeiros sonhos poderão fazer você desistir (são lentos mesmo para espectadores maduros). Não desista, ele engrena a partir do terceiro.

“- O Fuji entrou em erupção? Terrível.

- Bem pior do que isso! Não está sabendo? A usina nuclear explodiu! Os seis reatores nucleares estão explodindo um a um. O Japão é tão pequeno que não há como escapar.”

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Entre um sonho e outro a mesma tela negra com a inscrição “konna yume o mita” (algo como ‘tive tal sonho’) antecipa, quase de modo premonitório, algumas situações. O sexto sonho, “Monte Fuji em Vermelho”, toca na problemática da energia nuclear não das bombas, mas das usinas de energia. De fato, ela proporciona energia barata, abundante e próxima aos centros industriais, sem poluir a atmosfera, num país miserável em recursos naturais e incapaz de alimentar sua graúda economia sem recorrer ao urânio enriquecido. Mas e as conseqüências de acidentes ou imprevistos? Chernobyl há pouco cobrira a Europa de radiação. O sonho cobre a devastação pós-explosão.

“Disseram que as usinas nucleares eram seguras. Que o mau uso era o perigo, não a usina nuclear em si! Sem acidentes não haveria perigo. Foi o que nos disseram. Mentirosos! Se não forem enforcados por isso, eu mesmo irei matá-los!

- Não se preocupe. A radiação fará isso por você.”

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Kurosawa, que já havia trabalhado a temática da bomba em Anatomia do Medo ( e tornou a usá-lo no sétimo sonho), acompanhou o curso da história. Enquanto a Guerra Fria esmorecia e a perspectiva de um ataque moscovita se exauria, ele se voltou às mesmas preocupações que passaram a atormentar a opinião pública japonesa na época, ou seja, a gradual substituição do modelo desenvolvimentista do passado por outro menos desumanizador. A hecatombe dos reatores de Fukushima foi anunciada por um dos patronos do cinema nipônico com duas décadas de antecedência. Os japoneses não podem alegar que não foram avisados.


Fontes e Saiba mais:

Japan’s most fav mon-star – Steve Ryfle
História do cinema japonês – Maria Roberta Novielli
Japop , o poder da cultura pop japonesa – Cristiane Sato
Atomic Bomb Cinema – Jerome Shapiro
O Extremo Oriente idealizado: orientalismos no cinema – Marcela Canizo
14 contos de Kenzaburo Oe – Introdução
Post-Human Nightmares  – The World of Japanese Cyberpunk Cinema



Otakismo – Mestres do Anime: Satoshi Kon

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Satoshi KonUm mestre que se foi cedo demais.

“Dizem que a animação tem potencial infinito, mas dizem também ‘isto não serve para animação!’. O pessoal do ramo cinematográfico impõe limites à animação. Para eles, é tudo sobre garotas lindas, robôs e explosões, e não é bem assim” (Satoshi Kon)

Osamu Tezuka e Hayao Miyazaki após décadas de trabalho consistente obtiveram um trono cada no panteão da cultura japonesa. Dentro do universo pop, há anos existe certa ansiedade no Japão em revelar um profissional capaz de ocupar o vácuo deixado pelo envelhecimento de suas grandes estrelas. Uns mais veteranos, outros ainda aprendizes, que, com suas peculiaridades, surgiram como grandes promessas da animação japonesa. São usualmente mencionados nomes como Katsuhiro Otomo (Akira), Mamoru Hosoda (Summer Wars), Mamoru Oshii (Ghost in the Shell) e Makoto Shinkai (5cm/s).

ma3De uns, já não se espera muita coisa, em outros, ainda depositam votos de esperança na continuidade e evolução do trabalho. Infelizmente o mais coeso destes diretores – em minha opinião o melhor – teve uma carreira tão impressionante quanto curta, pois um câncer quis que ela fosse menor do que poderia. Falo de Satoshi Kon, workaholic que nos legou quatro animes longa metragem e um episódico, e nos deixou em 2010 aos 47 anos. Nesse texto pretendo enumerar suas principais características de trabalho para depois comentar, à luz dos fatos mencionados, cada uma das obras.

A começar pela análise técnica, a primeira qualidade a ser destacada em Kon, diretor versado nos clássicos Mobile Suit Gundam e Patrulha Estelar, é o profundo respeito à estética anime. Mesmo quando adotou o uso da tecnologia digital, investiu esforços e gastou recursos para mascará-la e não despersonalizar os padrões estéticos que caracterizaram e hoje definem e distinguem a animação japonesa das demais. Mesmo quando incorporou a tecnologia 3D, foi bem sucedido em tirar o melhor dos dois mundos e não drenou o DNA japonês dos seus filmes.

pb2A destreza no uso da paleta de cores é outra qualidade do Kon (e dos seus assistentes). Alguns diretores tiveram na coloração um elemento de consolidação das suas personalidades artísticas. Makoto Shinkai, por exemplo, faz das cores o seu elemento narrativo central, gosta de hiperrealidade, cores ardidas e muita densidade visual em tudo o que faz. Já Miyazaki costuma optar por um aspecto aquarelado nas animações do Studio Ghibli. Satoshi Kon, em contrapartida, adapta sua paleta às necessidades narrativas de cada história, podendo variar muito de uma para outra. Em Paprika uma explosão de cores. Em Tokyo Godfathers a capital japonesa é representada por cores frias cortadas pelo vermelho. Nas análises individualizadas ficará claro o motivo.

“Não acha que os sonhos e a internet são semelhantes? Ambos são lugares para se liberar o consciente reprimido”

paprika1Respeito à estética anime não implica servidão aos seus clichês. Não é possível ver em suas animações homens com cabelos azuis pontiagudos nem meninas com olhos aquosos a ocupar 40% do rosto. Os personagens são apresentados com aspectos realistas, dotados de traços humanos e não raro claramente asiáticos. Não há espaço para personalidades laboratoriais como Tsundere ou Imouto Kawaii. Todas as suas histórias acontecem em cenários urbanos japoneses (às vezes destruídos no final) e apontam pessoas, locais e situações de fácil assimilação, principalmente do público japonês, mas não exclusivamente. Isso facilita a projeção do espectador no drama.

Essa opção tem um propósito – e aqui o texto sai da técnica para entrar nas características propriamente narrativas. Satoshi Kon foi reconhecido como um animador apto a trabalhar sem maiores problemas na Sétima Arte, com atores e locações reais. Ele usou a animação como meio de tratar assuntos e abordagens cinematográficos. Cisne Negro sublinha essa tese, como aprofundarei mais para frente. Em outras palavras, Kon, mais do que fazer cinema animado, fazia cinema com animação, e espero que essa sutil diferença seja compreendida. E, para esclarecer qual era o público-alvo dele, o seu desejo era oferecer entretenimento aos adultos.

paranoia3Todas as suas produções podem ser inicialmente compreendidas como extensões de um mesmo tema: o Homem duplo. Divididos, a exercer dois papeis dentro de um conflito que opõe e mescla as perspectivas objetiva e subjetiva. Há separações entre realidade e universo psicológico (Perfect Blue e Paranoia Agent); realidade e ficção (Perfect Blue e Millennium Actress) e realidade e sonhos (Paprika e Perfect Blue). Todos trabalhados de modo muito inteligente para gerar desorientação, turvar essas fronteiras e desnortear o público de modo que, no meio da experiência, o espectador já não consiga mais distinguir a ilusão das situações concretas dos personagens.

Kon gosta de estilhaçar o senso de ‘continuidade sonolenta’ ao qual o público está acostumado para confundi-lo no meio e só desatar o nó da trama na conclusão, onde tudo ganha sentido novamente. Um método de trabalho que seria pouco comercial se mal trabalhada, mas justamente aí se revela a perícia técnica do diretor. Parece confuso, mas tudo ficará descomplicado quando eu exemplificar em cada filme.

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“Para alguém de fora, os sonhos e o filme dentro do filme são fáceis de distinguir do mundo real, mas para a pessoa que está passando pela experiência, tudo é real” (Satoshi Kon)

Satoshi, natural de Hokkaido, gozou oportunidades profissionais ímpares ao ter contato com profissionais renomados e qualificados antes de tomar a batuta de maestro para si. Após estudar design gráfico na Universidade de Artes de Musashino, foi assistente de Katsuhiro Otomo, artista de animação em Roujin Z, trabalhou com Mamoru Oshii e depois fez roteiro  de um dos curtas da tríade animada Memories. Ao lado deles lapidou seus senso crítico afiado, original e antenado. Só então ele dirigiu sua primeira animação autoral: Perfect Blue.

PERFECT BLUE (パーフェクトブルー , 1997)

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“- Sim, hoje foi o último. Não cantarei mais.
– Lembro-me de quando você dizia que queria ser uma cantora.
– Essa é minha grande chance! Eu já lhe disse.
-Ultimamente estamos procurando pelo novo single. Seu tio sempre compra 20 cópias de uma vez!
– Você não entende esta indústria, mãe.
– Você não é melhor cantando?
– Essa imagem de idol está me sufocando!”

Em Perfect Blue, Kirigoe Mima é uma idol da indústria fonográfica japonesa e está para realizar seu último show pelo trio de música pop ‘CHAM!’, dono de um sucesso apenas moderado. O objetivo dela é alavancar sua carreira como atriz e abandonar a imagem passada de idol virginal. No seu primeiro trabalho, lhe dão o papel de uma personagem que é estuprada numa boate. Pouco mais tarde, faz um ensaio de fotos eróticas. Essa virada de 180° na carreira não é nada bem vista pela sua agente, a ex-idol Rumi, nem pelos seus antigos fãs, em especial o Me-Mania, stalker obcecado pela antiga Mima, disposto a persegui-la de maneira doentia para recuperar a antiga Mima.

Pior, nem ela mesma tem certeza se foi uma boa ideia abandonar a carreira de idol para desempenhar estes papeis, sua mente fica dividida e começa a se manifestar por intermédio de um alterego. Uma carta bomba recebida é o estopim para a confusão mental de Mima. Desse ponto em diante muita atenção, pois a vida antiga se mistura com a atual e com os papeis encenados pela atriz Mima. O motor do filme pode ser sintetizado pela ideia ‘confundir para unificar’, falar da vida através da loucura, como explica o diretor:

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“As imagens da vida real e as imagens virtuais vêm e vão rapidamente em Perfect Blue. Quando você está assistindo ao filme, às vezes sente como se estivesse se perdendo em qualquer um dos dois mundos assistidos, real ou virtual. Mas, depois de idas e vindas, você eventualmente encontra sua própria identidade entre as suas potencialidades” (Satoshi Kon)

Além disso, o filme abre discussão sobre como funciona a vida no moedor de carne da indústria de entretenimento do Japão e outros assuntos subsequentes.  Em 2011 o filme Cisne Negro, dirigido por Darren Aronofsky e interpretado pela Natalie Portman, surpreendeu o mundo pela ousadia do roteiro e execução. É excelente, mas não me impressionou porque eu fiquei com a impressão de já ter assistido àquele filme antes. Parecia-me a versão real e ocidental de Perfect Blue, de um diretor fã confesso do Satoshi Kon. As semelhanças existem em abundância, tanto no plot quanto em cenas específicas (porta do metrô, quebra do espelho, fotografias falantes). Se duvida, assista a um comparativo em espanhol clicando aqui. Aliás, Perfect Blue inicialmente seria um filme live-action, mas com o terremoto de Kobe em 1995, cortaram as verbas e o projeto foi adaptado para o 2D. Trailer em inglês clicando aqui.

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“Nós fizemos uma edição rápida de um ponto a outro como se fosse uma cena de luta, mesmo quando não havia nenhuma cena de ação envolvida. Isso ajudou a enfatizar o senso de confusão da Mima” (Satoshi Kon)

MILLENNIUM ACTRESS (千年女優, 2001)

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“A premissa central deste filme é que uma idosa que fora uma grande atriz fale sobre sua história de vida. Enquanto ela conta, os filmes nos quais ela participou se entrelaçam com sua própria vida. O presente e o passado se cruzam e a história dela se torna tempestuosa. Esta é a essência deste filme e minha ideia original em Millennium Actress” (Satoshi Kon)

Millennium Actress é um tributo ao cinema nipônico, uma animação abarrotada de referências históricas ao trabalho cinematográfico do Japão e à história do país. Na trama, Tachibana, um entrevistador da televisão, está preparando um documentário a respeito de uma estrela aposentada do cinema japonês, Chiyoko Fujiwara, voluntariamente afastada da sociedade. Ao conseguir a rara oportunidade de entrevistá-la, ganha a chance de conhecer a história de vida da idosa atriz e os bastidores do trabalho. No desenvolvimento do filme, as experiências pessoais da intérprete se emaranham com os papéis por ela representados.

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A carreira da Chiyoko atravessa importantes páginas da história japonesa. Passa de maneira breve pelo Período Sengoku e se assenta no auge do Império Japonês, a campanha militar na Manchúria, a devastação da guerra e a reconstrução em parceria com os americanos, acompanhada de todas as mudanças culturais trazidas por elas. Filme sobre o fazer cinematográfico, homenageou grandes nomes da Sétima Arte, casos de Akira Kurosawa (Trono Manchado de Sangue), os filmes familiares do Yasujiro Ozu, além de gêneros, como o Jidaigeki e o Kaiju (de Godzilla).

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Chiyoko Fujiwara foi inspirada na vida da diva do cinema japonês Setsuko Hara, a ‘Eterna Virgem’, protagonista de filmes monumentais, a exemplo de Era uma Vez em Tóquio e Pai e Filha do Ozu, ‘o mais japonês dos cineastas’. Ela subitamente se aposentou aos 43 anos, após confessar nunca ter gostado de atuar e ter construído carreira de atriz apenas para sustentar a família nos turbulentos anos que circularam a Segunda Guerra. Depois de aposentada, viveu décadas num local afastado, sem conceder entrevistas, apenas flagrada pelos paparazzi de vez em nunca. Trailer em inglês clicando aqui.

TOKYO GODFATHERS (東京ゴッドファーザーズ, 2003)

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“Na noite de Natal, um milagre divino ocorrerá em um beco de Tóquio…“

Os padrinhos de Tóquio são o ponto destoante de toda a carreira do Kon. Diferente do que veio antes e dos títulos que o sucederiam, esta animação tem roteiro descomplicado, linear e pode ser definido como uma comédia com matizes dramáticos. A história se passa na noite de Natal compartilhada por três moradores de rua, um travesti, uma adolescente que fugiu de casa e um adulto que perdeu a família. Enquanto fuçam no lixo por um ‘presente’, encontram um bebê abandonado. O ‘senso maternal’ do travesti faz com que, a princípio, o trio de maltrapilhos adote a criança, mas depois a animação se converte numa saga para devolvê-la à mãe verdadeira. A criança vira um amuleto, uma benção natalina que protege a todos com uma cadeia milagrosa de coincidências positivas, apenas possíveis na noite Sagrada.

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“-Kiyoko queria que nós a encontrássemos.
– Kiyoko? Por que Kiyoko?
– Vem de Kiyo, ‘pura’, na mais pura das noites”

Durante a jornada, aos poucos se revelam os motivos que levaram os três às ruas. Por que estão lá? De onde vieram? Teriam para onde voltar? Paulatinamente os indigentes se projetam no bebê, um signo da esperança para os que já desistiram da vida e perderam a coragem e a esperança. As cores frias e mortiças do inverno toquiota se contrastam com o uso massivo do vermelho, cor que nas culturas asiáticas remete à vida, pureza, sorte e renovação. Uma lufada de calor na neve, freqüente contraste entre luz e escuridão, um trabalho semiológico interessante.

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“Minha mãe é a brisa pura
Que me vê partir
Para a jornada escura”

Em Tokyo Godfathers o diretor de arte, Ike Nobutaka, passou a usar mais de um plano na mesma tomada, um recurso propiciado pelas novas tecnologias que resulta em um maior realismo nas cenas, pois a técnica digital traz mais detalhes ao gerar profundidade nos cenários. Como curiosidade, a variante da Nona Sinfonia do Beethoven usada nesta animação buscou inspiração na versão sintética criada pelo Wendy Carlos no clássico Laranja Mecânica, do Stanley Kubrick. Trailer em inglês clicando aqui.

PAPRIKA (パプリカ, 2006)

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“Em um mundo de realidade inumana, o único santuário humano que resta é o sonho. A parada está cheia de refugiados afugentados da realidade contra a vontade deles”

Paprika retoma a estrutura que consagrou o Satoshi Kon, mas radicaliza a experiência. A temática tira o pé da realidade para se infiltrar nos domínios dos sonhos. O processo técnico de criação do roteiro e storyboards, em uma perigosa experimentação, foi alterado para se adequar à proposta do filme.

Em um futuro não muito distante, cientistas inventaram uma máquina psicoterápica capaz de visualizar os sonhos dos pacientes, o DC Mini. Ainda em fase de testes, um dos aparelhos é roubado do laboratório antes do desenvolvimento das barreiras de restrição, o que possibilita a entrada de terceiros nos sonhos alheios. Imediatamente após o roubo, um dos cientistas, após proclamar frases sem nexo, tenta o suicídio ao pular na janela num evidente estado de inconsciência sobre seus atos. O detetive Konakawa da Polícia é envolvido, mas ele é um dos que estão fazendo tratamento ilegal com o DC Mini roubado, em posse de uma mulher que se identifica como Paprika. Sonhos e realidade se misturarão enquanto o público tenta entender quem roubou a máquina e com quais intenções.

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“O homem tem a responsabilidade de controlar a ciência e a tecnologia. Compartilhar sonhos é literalmente um sonho tecnológico, mas, com o tempo, isso resultará em violência.”

Paprika é a adaptação animada do livro homônimo escrito por Yasutaka Tsutsui. A narrativa literária foi criada para dar sentido às imagens oníricas acumuladas e ao conhecimento em psicanálise do escritor. Alguns diretores se propuseram a adaptar o livro em live action, todos recusados pelo autor. Para ele, suas aventuras oníricas precisavam da animação como meio, então ele ofereceu pessoalmente o projeto ao Satoshi Kon. O livro – uma metaficção – transborda surrealismo, o filme já conecta algumas pontas para atribuir certo sentido à experiência. A cena da “Parada de tudo o que existe” é o ponto de encontro entre eles e pode ser assistida clicando aqui.

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“Que castigo recairá sobre o plebeu ignorante que tentar entrar em um sonho sagrado?”

O título pode fomentar reflexões muito sofisticadas sobre o papel da moral diante do poder quase ilimitado da ciência e suas aplicações tecnológicas – deve ser feito apenas porque é possível fazer? –, questiona. E gosta de confundir, pois muitas vezes coloca essas reflexões na boca do vilão. Paprika pode também ser apreciado apenas como uma explosão de sensações imateriais, algo mais próximo da proposta do livro. Ao final da experiência, como sempre, percebe-se que Satoshi Kon está falando sobre a vida, e usa os sonhos oníricos como mera ferramenta para dialogar sobre os sonhos concreto de cada um na platéia.

“Implantar sonhos na cabeça alheia é terrorismo”

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Em respeito à natureza surreal de Paprika, Kon optou por iniciar a produção dos storyboards antes mesmo da finalização do roteiro. Como a história ainda não tinha sido totalmente elaborada para amarrar todas as pontas, a intenção era introduzir um elemento aleatório na concepção, afinal, se nem os criadores sabem, no começo, como a história vai terminar, é de se esperar que o público seja surpreendido de cara com a imprevisibilidade que um bom sonho deve ter. As opiniões sobre a eficácia desse método variam, mas em termos conceituais fica difícil não qualificar positivamente a ideia.

“Quando se sabe o final, tende-se a forçar tudo na história para a direção do clímax. Normalmente faço a maior parte da história de modo simples e seguro, de modo que eu possa usá-la de suporte para o final, sem complicar as coisas. Eu decidi experimentar um método diferente neste projeto” (Satoshi Kon)

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O trabalho da equipe na Madhouse foi árduo. 614 páginas de storyboard executadas em 1046 tomadas. Muita densidade informativa na tela – para diferenciar sonhos de realidade – cuidadosamente remodelada para aparentar desenhos feitos à mão. Quando se analisa os detalhes, é possível ver que alguns confetes da parada caem atrás de algum objeto, enquanto outros caem pela frente. Um zelo, definido por alguns como preciosismo, pouco provável de ser detectado por um olhar leigo espontâneo, mas que faz diferença na experiência final. Assim como Perfect Blue influenciou Aronofsky em Cisne Negro, Paprika foi um dos títulos que inspirou Nolan na criação do filme Inception. Trailer em inglês clicando aqui.

“A vaidade dos residentes diurnos é o que os noturnos querem”

PARANOIA AGENT (妄想代理人 , 2004)

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“a criança perdida é o magnífico cogumelo no céu”

Paranoia Agent é a sua única animação em formato de episódios, 13 no total, realizados entre a produção de Tokyo Godfathers e Paprika. Pela maior disponibilidade de duração e flexibilidade do formato, pôde desenvolver nele várias idéias não aproveitadas nos filmes e inviabilizadas pelas distintas naturezas das mídias cinema e TV. A morte precoce do diretor valoriza ainda mais Paranoia Agent, pois foi a única amostra de como funciona a mente do Satoshi Kon fora do gesso cinematográfico.

O anime começa nos mostrando Sagi Tsukiko, a character design responsável pelo grande sucesso kawaii do Japão, o fofinho e lânguido cachorrinho rosa chamado Maromi. Com seus olhos cansados, Maromi é uma febre que movimenta muito dinheiro na forma de absolutamente todas as espécies de produtos licenciados, tem série animada, CD, pelúcia e tudo mais. Uma versão fictícia dos reais Doraemon, Pikachu, Hello Kitty e todos os outros bichinhos kawaii que sufocam o mercado de massa japonês com seu onipresente aroma de tutti-fruti. Tsukiko, no entanto, é intimada por sua empresa para dar sequência no sucesso de Maromi através da criação de um novo personagem. Como fazer para replicar o sucesso de um fenômeno, cada vez mais pressionada por demandas insustentáveis e hostilidades das companheiras de trabalho, invejosas do dinheiro e prestígio conquistados por ela com Maromi?

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Quando estava prestes a jogar a toalha, Tsukiko é agredida com um bastão de beisebol por um garoto ginasial em patins dourados. Hospitalizada, Tsukiko vê seus prazos serem flexibilizados e um sabor de alívio paira em sua boca. O agressor passa a atacar pessoas Japão afora com seu taco e o anime ganha rumos detetivescos com as investigações dos agentes Ikari e Maniwa da polícia japonesa. A primeira metade do anime mostra diversas histórias paralelas, personagens distintos que se entrelaçam numa rede social complexa, todo conectados pela mesma liga: o agressor do taco de beisebol, o Shonen Bat. Todos foram atacados impiedosamente pelo delinquente juvenil enquanto a polícia buscava evidências para capturar o pequeno marginal.

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Maniwa, ao perceber a incapacidade de capturar o sujeito por vias policiais clássicas, atenta para um fato importante. As vítimas foram todas atacadas em momento de desespero, em situações onde não viam mais saída para seus problemas. Possuídos pela paranóia, eram atacados e encontravam conforto na cama do hospital, que não cobrava nada deles. Todos ficavam aliviados e pareciam apreciar os resultados da agressão. A questão inicialmente levantada por Ikari começa a rondar a cabeça de Maniwa… Existe mesmo um criminoso?

Não vou entrar em muitos detalhes para não estragar a sua experiência com spoilers, mas, após assistir, peço que leia meu texto no qual desenvolvo uma argumentação que tenta explicar cada um dos fatos e simbolismos (para ler o texto, clique aqui). Em Paranoia Agent Kon vai debater suicídio, bullying, cultura do consumo e  relação do povo japonês com a memória da guerra. É genial, meu anime favorito. Trailer em inglês aqui.

DREAMING MACHINE (夢みる機械, sem data) dm

Dreaming Machine é o nome do trabalho que ficou incompleto pelo adoecimento do Kon. A preparação de outra ruptura com sua filmografia, pois seria um filme para crianças totalmente protagonizado por robôs. O Estúdio Madhouse lhe prometeu nos momentos finais que terminaria o filme usando suas anotações como um tributo à sua carreira, mas recentemente paralisou a labuta por falta de financiamento. Eles esperam conseguir fundos para a conclusão do projeto derradeiro até o final de 2015.

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Satoshi Kon desfrutou de muita notoriedade no Ocidente por demonstrar que a animação não obrigatoriamente precisa ser infanto-juvenil e desmiolada, e, mais especificamente, a animação japonesa não precisa necessariamente ser de pancadaria entre adolescentes de cabelos coloridos ou reinos mágicos com simbolismos orientais indecifráveis. Ela é um meio com características próprias que pode ser usado para contar histórias boas ou nem tanto, como qualquer outra mídia (em qualquer uma a mediocridade é o padrão). Uma grande herança que ele deixou para o pop japonês foi justamente a desmistificação de alguns clichês que afastavam o público não iniciado dos produtos culturais japoneses.

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Não, não acho que o anime precisa ser elevado à categoria de produto ‘adulto’ ou ‘maduro’ para ganhar respeito, apenas acredito que a animação pode abranger todos os públicos, e para isso precisa de pioneiros. É preciso abrir espaço para boas histórias animadas direcionadas às crianças, aos adolescentes e também aos adultos. Kon ajudou a difundir essa perspectiva com história originais, universais e contemporâneas. Foi um sopro de originalidade no cenário mundial dos filmes animados, muito refém daquela eterna e batida fórmula Disney/Pixar do “engraçadinho para as crianças, com uma mensagem positiva para os pais”, já que a família toda precisa assistir para a bilheteria justificar os altos custos de produção.

Dentro de uma perspectiva japonesa, Satoshi Kon não foi nenhum revolucionário, apenas contribui com seu quinhão de boas produções, sem grandes oscilações qualitativas. Ainda não temos a perspectiva histórica suficiente para afirmar, mas acredito que Kon não deverá ser colocado no mesmo patamar de Tezuka ou Miyazaki no mundo dos homens. Se existe outro mundo além do nosso, entretanto, tenho certeza que Tezuka o recebeu com um ‘bom trabalho, sensei’.

(Ah, ele também dirigiu esse curta de um minuto chamado Ohayo [bom dia], que você pode assistir clicando aqui)

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“Então, a todos que permaneceram comigo através deste longo documento, obrigado.
Com meu coração cheio de gratidão, por tudo de bom no mundo, soltarei minha caneta.
Agora, com licença; eu preciso ir “
(Satoshi Kon, em sua carta de despedida, Agosto de 2010)

por @AntonioLeeDesu


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Otakismo – Recomendações: O Cinema Coreano – Uma Introdução

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Cinema Coreano Otakismo

O crescente mercado cinematográfico coreano em pauta.

Antes de listar as recomendações, é válido partir da contextualização histórica e apresentar as características gerais da produção audiovisual sul-coreana. Neste texto há uma breve introdução aos motivos do sucesso da Coreia neste setor e uma seleção de filmes aptos a iniciá-lo(a) satisfatoriamente na maioria dos gêneros contemplados por aquilo que se convencionou chamar Novo Cinema Coreano – tentei encontrar um ponto de equilíbrio entre o gosto pessoal e os títulos mais famosos e representativos. Se não deseja ler a introdução, pule direto para o tópico “Oldboy e a Trilogia da Vingança”. Os nomes dos filmes em negrito serão links clicáveis que te direcionarão ao trailer!

INTRODUÇÃO:

A tecnologia e a linguagem cinematográficas foram criadas e desenvolvidas nos domínios de poucos países. França, Estados Unidos, Rússia, Alemanha, Itália, Japão e Inglaterra legaram ao mundo praticamente todo o know-how acumulado hoje pela Sétima Arte, tanto em narrativa quanto em técnica – gêneros, câmeras modernas, novas lentes, inovações em planos de captura, fragmentação das narrativas convencionais. A ruína soviética e o advento da globalização, todavia, pavimentaram estradas para novas escolas cinematográficas destacadas a partir dos anos 90.

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Algumas escolas apareceram devido ao volume de produções, como a Índia (Bollywood) e a Nigéria (Nollywood). Outros países ganharam notoriedade pela qualidade dos filmes, dentro da proposta de cada um, casos da Argentina, do Irã, da Tailândia e da China (incluindo Hong Kong e Taiwan). Nenhum destes emergentes cinematográficos, de qualquer modo, conseguiu igualar a dimensão, a consistência, a popularidade, a heterogeneidade e a rentabilidade dos filmes produzidos na Coreia do Sul.

Os coreanos conseguiram romper barreiras geográficas e, não apenas aumentaram a audiência interna (mais da metade dos filmes vistos na Coreia são pátrios), como passaram a dialogar com um público global, fato demonstrado pelos mais de 120 milhões de ingressos vendidos fora das fronteiras nacionais em 2013 (5º país com a maior bilheteria acumulada no exterior). Para não mencionar a constante presença e premiações nos festivais internacionais de prestígio. Park Chang-wook, Lee Chang-dong, Kim Ki-duk, Kwong Tag-in e Hong Sang-soo passaram a ser laureados em Veneza, Cannes, Berlim e Nova York, onde se instalam os mais importantes festivais do mundo.

My Sassy Girl

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS:

A produção audiovisual da Coreia do Sul, florescida como veículo de propaganda do Império Japonês durante a ocupação nipônica, depois convertida em canal de propaganda dos valores bem vistos pela ditadura local após a divisão do país, se beneficiou do relaxamento na censura estatal, consequência da queda do regime militar que governou a nação até os anos 80.

Com isso, uma nova safra de diretores, quase todos muito jovens e tecnicamente bem treinados, abriu mão do purismo nacional e trouxe à Coreia influências diversas dos mangás japoneses, dos longas-metragens de kung fu de Hong Kong, do Western Spaghetti italiano e, sobretudo, dos blockbusters da Califórnia. Os filmes coreanos se ‘hollywoodizaram’ em termos de estilo e práticas comerciais, mas mantiveram temas e sensibilidades locais, em outras palavras, ressignificaram gêneros cinematográficos sob uma ótica oriental.

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Park Kwang-su, Jang Sung-woo e outros diretores coreanos mais autorais ainda gozam de maior liberdade criativa, com papel central na produção do filme, diferente de Hollywood, onde muitas vezes a produtora detém maior parcela de influência nos rumos e estéticas dos produtos. Eles gostam de misturar gêneros e tornam difícil a rotulação das películas, é comum ver elementos de comédia, suspense e ação misturados com muito bom gosto. Mesmo com produções autorais, o cinema coreano hoje é fundamentalmente comercial e criado para auferir lucro, sendo hoje pouco ou quase nada dependente de verbas públicas.

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O governo de Seul teve papel fundamental no renascimento e independência do seu cinema local. A Crise Asiática de 1997 escancarou aos governantes no período Kim Dae-jung o imperativo da exportação para a revitalização da economia nacional. Com isso em vista, ajudou a divulgar os produtos culturais da Coreia fora da península, como o Kpop, as novelas, os jogos eletrônicos e o cinema (a Hallyu, explicada a fundo em outro texto do ChuNan que pode ser lido clicando AQUI).

Eles então desenvolveram o Korean Film Council (KOFIC) para patrocinar traduções de legendas, stands em festivais e viagens aos diretores, além de criar o influente Festival de Cinema de Busan. Em 1995, a Coreia do Sul exportou apenas 15 filmes, para, apenas uma década mais tarde, contar 202 filmes exibidos oficialmente no exterior. Seus executivos testemunharam um aumento de 365 vezes no faturamento com bilheteria fora do país  no mesmo período.

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Internacionalizados, os estúdios coreanos buscam novos e maiores mercados para que o faturamento acompanhe o aumento galopante nos custos de produção. Uma saída inteligente foi as parcerias com grupos estrangeiros em co-produções, onde dividem gastos de marketing e distribuição, além de permitir a penetração em mercados restritos como o chinês, possuidor de cotas para conteúdo estrangeiro. Você pode torcer o nariz para as versões americanas de Oldboy, Il Mare e My Sassy Girl, mas apenas isso viabiliza o crescimento da ainda frágil indústria cultural da Coreia. Vamos logo ao que interessa, aos filmes. Alguns tópicos estão separados por gênero enquanto outros foram agrupados por temática.

OLDBOY E A ‘TRILOGIA DA VINGANÇA’ (Park Chang-wook)

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“Ria, e o mundo rirá com você. Chore, e chorará sozinho”

Oldboy (올드보. 2003) já é considerado um clássico moderno. Quando se pensa em películas coreanas é inevitável lembrar-se de Oldboy, vencedor do Grand Prix em Cannes 2004, a porta de entrada para o cinema da península asiática. Oh Dae-su é subitamente sequestrado e enclausurado por 15 anos em um quarto, onde pode desfrutar apenas da companhia de uma televisão. Suas namoradas são as cantoras dos programas musicais, suas refeições são invariavelmente compostas por bolinhos chineses entregues por uma portinhola. Detalhe: não lhe é dado qualquer esclarecimento para o cárcere e ele tampouco se recorda de ter feito algo que justifique o confinamento. Certo dia ele é liberado também sem explicação. Enfim livre, 15 anos mais velho, Dae-su corre atrás de vingança e compreensão dos motivos que levaram alguém a prendê-lo por tanto tempo.

“Embora eu não passe de um animal, não tenho o direito de viver?”

Adaptação do mangá homônimo produzido no Japão por Garon Tsuchiya e Nobuaki Minegishi (publicado no Brasil pela Editora Nova Sampa), é a evidência do sucesso do modelo sul-coreano. Em vez de temer a globalização e fechar o mercado com mil restrições e protecionismos sem prazos para acabar – com medo do ‘imperialismo estrangeiro’ -, eles a abraçaram e transformaram ameaça em oportunidade. O fluxo de produtos importados não só não matou a indústria nacional como a fortaleceu na marra, ao impor seu padrão de qualidade e ao mesmo tempo servir de referência criativa. Ele varreu a letargia do antigo cinema coreano. Oldboy foi a resposta local ao gigantismo dos estúdios ocidentais e japoneses. A atuação do Choi Min-sik no papel do protagonista é primorosa. Em 2013, o americano Spike Lee fez uma contestada e desnecessária versão do filme.

Mr Vingança

Oldboy é o segundo filme de uma trilogia cujo mote é a vingança. Antes dele veio Simpatia Pelo Sr. Vingança (복수는 나의 , 2002). Ryu, protagonista surdo-mudo, trabalha em uma fábrica pesada para sustentar a irmã que desesperadamente necessita de um transplante de rim. Sem perspectiva de ver a fila do transplante andar, ele apela ao mercado negro e oferece dinheiro e um rim próprio em troca de outro órgão imediato à sua irmã – com quem não compartilha compatibilidade sanguínea. Os criminosos, não muito afeitos às promessas, o traem. Ryu – cujos pensamentos são apresentados na forma de diálogos do cinema mudo -, com a ajuda de sua namorada anarquista, dá início ao seu projeto de vingança. A situação engendra uma cadeia fatalista de psicóticos tocando três projetos vingativos ao mesmo tempo. Eu gostei muito do desenvolvimento dele.

lady vengence

“Beying good doesn’t get you anything”

Oldboy foi sucedido por Lady Vingança (친절한 금자, 2005). Uns o consideram o melhor da trilogia por aspectos mais líricos da construção imagética, que existem em grande quantidade nele, mas acho ele um pouco abaixo dos primeiros pelo desenvolvimento mais artificial do roteiro. Assista e tire suas próprias conclusões. A trilogia como um todo possui aspectos em comum além do tema central. Há a existência de personagens tragicômicos (como o suicida em Oldboy e o deficiente mental em Senhor Vingança), takes no gramado, quartos vazios e foco da câmera em rostos enraivecidos.

O HORROR! O HORROR! (K-HORROR, TERROR À COREANA)

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Se existe um domínio cinematográfico onde os coreanos disputam braçadas com os protagonistas sem dúvidas é o terror. A partir da apropriação de elementos do terror nipônico, o K-horror conquistou plateias em todos os mercados pela qualidade da fotografia, imprevisibilidade em alguns roteiros, abordagem diferenciada dos temas e personagens femininos comumente belas e juvenis. O que eles fazem de melhor é o horror psicológico inspirado nas produções japonesas. O mais famoso deles é A Tale of Two Sisters (장화, , 2003), baseado numa lenda folclórica coreana, no qual duas irmãs retornam ao lar após passarem um tempo internadas. Recebidas por uma madrasta tirânica e um pai passivo, imersas em um péssimo clima familiar, as meninas descobrirão que uma alma atormentada vive sob o mesmo teto. E esse é só o começo de um enredo com várias reviravoltas…

Cinderella

A Coreia proporciona, com mais ou menos qualidade, uma infinidade de opções subsequentes no terreno assombrado: Arang, Bunshinsaba, the Red Shoes, Cinderella, Cello, Phone, Hansel and Gretel, R-point, The Wig. No âmbito do cinema slasher, o mais distinto é Bloody Reunion. Não assisti a todos os enumerados acima, não sou fã de terror, mas o terreno é fértil.

O K-horror ganhou autoridade nos últimos anos, mas tudo começou com a franquia Whispering Corridors (여고괴, entre 1998 e 2009). Cinco filmes com uma temática central – garotas na escola -, mas sem relação de continuidade entre eles, permitem aleatoriedade na ordem de assistir. Não é terror extremo, pendulam entre o horror soft e o suspense sobrenatural. Franquia ganhou muito prestígio na Ásia por trabalhar com suicídio juvenil, homossexualidade e os excessos do sistema educacional coreano (conivente com castigos físicos na época), entre outros temas polêmicos.

memento mori

O segundo filme, Memento Mori, é o mais popular da franquia, pois não tem como prioridade assustar ou amedrontar o espectador, mas sim trabalhar, com o acréscimo de subsídios fantasmagóricos, o drama de um casal homossexual impedido de ficar junto pela pressão no ambiente educativo e cultural sul-coreano. Vale a menção por ser a mais célebre franquia coreana do gênero, mas tenha em mente que você não vai sentir calafrios assistindo a eles, principalmente se já for perito em outros clássicos da categoria.

SUSPENSE:

i saw the devil

A temática da vingança é incessantemente explorada pelo cinema da Coreia. A Trilogia de Park Chang-wook é apenas a mais ilustre dentro de uma ampla gama de suspenses que abordam o mesmo argumento: cidadãos ordinários vítimas de alguma injustiça se revoltam, tomam uma decisão extrema e optam pela vendeta, se possível com uso de violência mais enérgica do que a aplicada sobre si. O público coreano é, segundo alguns especialistas, muito sensível ao assunto devido aos milênios de opressão e aculturação arbitrária de invasores diversos: chineses, japoneses, mongóis, russos… Outros ligam a fixação do coreano pela vingança ao turbulento processo de democratização do país, cravejado de casos de corrupção e impunidade.

Eu Vi o Diabo (악마를 보았, 2010) é talvez o melhor da espécie. Um psicopata decapita a mulher de um agente da polícia coreana. Atormentado, o oficial resolve achar o criminoso e fazê-lo sentir um desespero igual ao seu. Psicopatas, porém, têm algumas disfunções cerebrais que os fazem imunes a certos estímulos e apresentam diferente capacidade de sentir e expressar medo, ansiedade, culpa ou desalento – quando a possui. O policial cria um jogo de perseguição com sua presa para tentar extrair dela a humanidade que nele transborda em saudade da mulher. Mas o psicopata não é um inofensivo camundongo disposto a brincar de gato e rato para sempre e decide ele ser gato também.

the man from nowhere

O Homem de Lugar Nenhum (아저씨, 2010) apresenta o proprietário de uma miserável loja de penhores, dono de um passado nebuloso e impressionantes habilidades em artes marciais, amigo de uma menina vizinha no conjunto habitacional. A vida banal se transforma quando a mãe viciada da garota mexe com as pessoas erradas. A polícia coreana e mafiosos da Coreia e da China se colocam entre a improvável amizade construída por um homem de lugar algum e uma menina maltratada, ambos sozinhos no mundo. A truculência deles seria capaz de romper o laço entre os dois? Se gostar do gênero, assista The Chaser (추격자, 2008) também.

bedevilled

Aos que apreciam o escopo vingativo, é provável que se delicie também com a crueza de Bedevilled (김복남 살인사건의 전말, 2010) e com o tom desesperançado de Pietà (피에타, 2012). Uma coisa a ser notada ao acompanhar filmes de suspense e ação coreanos é a menor proporção de armas de fogo nas películas, comparado às americanas. Só 2% das mortes na península são com arma de fogo, logo, muitas vezes objetos do cotidiano viram armas nas mãos dos personagens que resolveram partir para a violência: faca, serrote, corrente, garrafa quebrada, fogo, caneta, martelo, alicate e outros objetos alternativos capazes de tornar as cenas de violência bem diferentes do padrão. E doentias.

DRAMA:

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“- Que cara é essa? Parece nervosa. Sorria.

- Não devo sorrir.

- Por que não?

- Os homens me pediam para não sorrir, porque isso os fazia se apaixonarem por mim. Todos enlouqueciam quando eu sorria. Vai te acontecer o mesmo se eu sorrir.”

Em Poesia (, 2010), uma senhora tenta desenvolver uma veia artística ao se matricular num curso de poesia, enquanto convive com os primeiros sinais de Alzheimer – doença responsável pela corrosão de sua capacidade linguística -, e a delinquência juvenil do neto com quem mora, acusado de participação em um estupro coletivo na escola que frequenta. Sua primeira e única poesia será uma elegia à presa molestada pelo seu herdeiro. As pontas soltas no roteiro deixam a história aberta e pedem a participação do espectador. O primeiro filme do genial Lee Chang-dong a arrebatar plateias no mercado ocidental.

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Do mesmo diretor de Poesia, Peppermint Candy (박하사, 1999) começa do fim, como em Memento de Christopher Nolan, e parte do suicídio de um policial para depois exibir, em cronologia reversa, a existência vivida e o que o levou ao ato extremo. Como aperitivo posso descrever uma cena na qual, após torturar um preso e se sujar com as fezes dele, ele não consegue tirar o aroma da mão, enquanto um parceiro de trabalho lhe adverte “é difícil tirar esse cheiro”. O espectador testemunha, como se rebobinasse uma antiga fita VHS, o processo de profanação da inocência de um jovem. Durante todo o filme, um trem em marcha-ré mantém a busca pela pureza para sempre perdida. Uma referência à onda de repressão policial que pairou sobre a Coreia nos anos que antecederam a queda da ditadura militar. Mais especificamente ao Massacre de Gwangju e às centenas (alguns dizem milhares) de civis nele ceifados. Uma lembrança muito viva na memória dos coreanos e um marco na luta democrática no continente asiático. Um senhor filme, mas fundamentalmente dramático que sublinha a vida do policial, Gwangju é apenas um pano de fundo sequer mencionado diretamente. Sobre o assunto há abordagens mais cruas:

A petal

“Se por acaso você vislumbrar sua carne nua através das dobras da saia suja e rasgada dela, vire a cabeça e passe por ela como se nada tivesse visto. Mesmo que ela puxe seu cotovelo ou manga, gentilmente livre-se dos seus dedos. Se você a ver seguindo-o algum dia, não tenha medo dela nem proclame palavras ameaçadoras. Apenas dedique um pouco de tempo a olhá-la com alguma consideração”

Os coreanos produziram bons dramas politizados, dos quais A petal (꽃잎, 1996) de Jang Seon-woo é um dos dois mais importantes exemplares. Sombrio, acompanha a vida de uma garota de 15 anos enlouquecida após fazer parte de modo involuntário do Levante de Gwangju. Seus surtos alucinados, no papel de mendiga, são mesclados com estupros sofridos e flashbacks que revelam aos poucos sua experiência traumática no campo de batalha da repressão militar em 1980. O filme é politicamente proeminente, pois foi o primeiro a levantar debate na Coreia democrática sobre o passado político recente do país. O presidente do país na época, general Chun Doo-Hwan, foi condenado à morte no ano do lançamento do filme, também pelas medidas repressivas descabidas tomadas em Gwangju (mas recebeu perdão presidencial em 97).

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A Single Spark (아름다운 청년 전태, 1996), o segundo principal drama de relevância política, é interessante por exibir as dificuldades da luta por melhores condições trabalhistas em um país capitalista, ainda pobre e periférico, opositor de uma (outra) ditadura comunista. O filme se passa em dois recortes temporais: um pesquisador que estuda a vida de um ativista morto por autoimolação em protesto às condições de trabalho desumanas e instituições inoperantes reinantes na Coreia do Sul da época, em alternância com as memórias sépias desse militante enquanto trabalhador do setor têxtil, até hoje uma área responsável por manejar mão-de-obra escrava na Ásia. Considero o filme forte por ter passado meses estudando o desenvolvimento econômico da Coreia durante o meu TCC e conhecer de perto a realidade fustigante dos trabalhadores no período. E a impossibilidade de reclamar melhorias sob a sombra da Coreia do Norte e o temor de uma infiltração vermelha no Sul.

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Drama é o gênero mais prolífero do cinema coreano por conta da verba diminuta. Com budget quase sempre limitado, estúdios conseguem contar boas histórias sem depender de muito além de um bom roteiro. Intrigas conjugais e suas traições amorosas são bem encenadas em O Dia Em Que o Porco Caiu no Poço (돼지가 우물에 빠진 날, 1996) e A Mulher de um Bom Advogado (바람난 가족, 2003). Em caso de desejo por aprofundamento no gênero dramático, corra atrás de A Virgem Desnudada Por Seus Celibatários (Oh, Soo-Jong!, 2000), Samaria (사마리아, 2004) Crying Fist (주먹이 운다, 2005), Christmas in August (8월의 크리스마스, 1998) e The Contact (접속, 1997).

COMÉDIA:

quiet familyMuitos filmes de humor coreanos não apelam ao pastelão, preferem a criação de uma atmosfera cômica às risadas fáceis. São estes os recomendados aqui (desculpo-me de antemão aos que buscam incessantes gargalhadas). É o caso do curioso  The Quiet Family (조용한 가족, 1998). A ambientação e a sinopse do filme predispõe a plateia a crer se tratar de uma história de terror ou suspense. A família Kang adquire um terreno em uma área remota da cidade e constrói uma hospedaria para abrigar os viajantes das montanhas. O negócio é um fracasso e ninguém se acolhe no alojamento. Eis que finalmente chega um primeiro cliente, mas o objetivo dele era suicidar-se no local. A ruína do freguês inaugural leva a família Kang a um caminho sem volta. E sim, é uma comédia, não como American Pie, mas uma comédia, assim como o próximo título:

attack the gas station 2

 “Por que eles assaltaram um posto de gasolina? Por diversão…”

Attack The Gas Station (주유소 습격 건, 1999) causou enorme impacto na Coreia do Sul. Um quarteto de ladrões decide assaltar novamente o mesmo posto de gasolina para aplacar o tédio. Incapazes de retirar o dinheiro, eles fazem os funcionários de reféns e dominam o estabelecimento para embolsar a grana que brota das bombas de combustível. Com práticas comerciais heterodoxas – como lavar o carro do freguês com combustível ou completar o tanque do cliente que pediu para encher apenas a metade e extorqui-lo ao término da prestação do serviço –, o grupo se envolve em confusões cada vez maiores. Compra briga com a polícia, com uma gangue de motoqueiros e com os mafiosos da região. Quando enfadados, transformam os sequestrados em bobos da corte, obrigando-os a cantar, brigar ou jogar com eles. Cada atitude tomada gera uma conseqüência imprevista e de maior proporção, até que o local vira um campo de batalha caótico e surreal (existe uma continuação, certifique-se de assistir ao primeiro).

Attack the Gas station

O posto de gasolina é na verdade um criativo microcosmo da sociedade sul-coreana durante a Crise Asiática do fim do século XX, com jovens rebeldes e sem limites, polícia corrompida e instituições falidas. Um dos delinquentes destrói uma placa que incentiva a produtividade do trabalhador coreano. Em outra cena um policial ridiculariza a qualidade dos veículos nacionais e a forma como são produzidos. Quando andam no carro, é visível a semelhança com os delinquentes de Laranja Mecânica. O filme mexeu com os jovens coreanos e, no período do lançamento, vários postos de gasolina reais foram depredados na Coreia. Mas não se preocupem, essas são apenas camadas, o filme não é pretensioso, é uma comédia acima de tudo, mas uma comédia com alguma textura.

my wife is a gangster

O famoso Minha Mulher Mafiosa ( , 2001) apresenta Eun-jin, a número dois na hierarquia de uma associação mafiosa. Apesar de bela, não possui traquejos de feminilidade, vive como os trogloditas do bando. Com um passado duro em comum, a irmã doente é seu único porto seguro no mundo. Para realizar o desejo da irmã de vê-la casada, Eun-jin vai atrás de um matrimônio de fachada. A frigidez da mafiosa é colocada à prova quando ela se vê obrigada a comportar-se de acordo com os códigos de conduta da sociedade. É uma trilogia, da qual só assisti ao primeiro. Com acréscimo de ação baseada nos filmes de kung fu chineses, é uma comédia descompromissada, não espere nada marcante, mas é um título realmente popular.

AÇÃO!

the good the bad and the weird

“- Por que comprar terras quando seu país é roubado?

- Para pessoas como nós, tanto faz viver sob o comando da nobreza ou dos japoneses.”

O clássico italiano de Western Spaghetti ‘O bom, o Mau e o Feio’ de Sergio Leone inspirou os coreanos na execução da versão asiática do gênero, “O Bom, o Mau e o Estranho” (좋은 , 나쁜 , 이상한 , 2008), filme que encabeça o sub-gênero Western Kimchi, os caubóis que apreciam muita pimenta na comida. Aqui não temos o Oeste selvagem dos EUA e sim a Manchúria ocupada pelos japoneses no período entreguerras. Um bandido coreano rouba um mapa de um figurão japonês. Outro é pago para recuperar o papel. Um terceiro está atrás do pescoço do segundo. Três foras da lei coreanos, gangues chinesas e o Exército imperial do Japão se envolverão numa caça ao tesouro e às cabeças no deserto da Manchúria.

A abordagem bebe na fonte da Trilogia dos Dólares do italiano e deixa de lado a dicotomia bandido-mocinho. Um bangue-bangue muito bem realizado, com belas cenas de ação e picos de comédia nas cenas do ‘Estranho’, interpretado com maestria pelo onipresente Kang-ho Song. Um dos maiores orçamentos da história do cinema coreano.

(os filmes de suspense e vingança trabalhados acima, e os de máfias abaixo possuem muita ação, recomendo-os aos fãs do gênero também).

MÁFIA:
O SUBGÊNERO GEONDAL, O CRIME ORGANIZADO DA COREIA

newworld2

Estados Unidos e Japão produziram pérolas cinematográficas ao romantizar a atuação do crime organizado na América e a Yakuza. O Poderoso Chefão, Scarface e os cinco filmes da Batalha sem Honra nem Dignidade de Kinji Fukasaku são exemplos inesquecíveis. A fórmula é usada com menos notoriedade pelos chineses, filipinos e também pelos coreanos, que expõem a versão kimchi do crime, a máfia coreana, em filmes do gênero geondal (Kkangpae). Jogam luzes sobre os grupos mafiosos do país, suas ligações corruptas com o governo, seus métodos de violência explícita e muitas traições, em roteiros elaborados e de execução invejável. É um subgênero dos filmes de ação, mas podem ocupar-se de elementos dramáticos ou suspense, como exemplificarei.

Novo Mundo (신세계, 2013), o primeiro de uma programada trilogia, conta a história de Ja-sung, um policial infiltrado no maior sindicado criminoso da Coreia do Sul. Ao se deparar com a morte do chefe do bando, a Polícia aproveita o caos momentâneo para influenciar com seus laranjas a sucessão no grupo e toca o projeto chamado New World. O policial, dividido entre a vida dúbia e o risco de ser descoberto, tenta conciliar sua vida afetiva enquanto galga degraus na hierarquia do crime. Um filme excelente, com final surpreendente e clara influência de Godfather. Um legítimo ‘must watch’, boa porta de entrada para o gênero. Outros filmes reconhecidos são: A Dirty Carnival (비열한 거리, 2006) e Nameless Gangster (범죄와의 전쟁, 2012).

bittersweet life

“Em uma noite de outono, o discípulo acordou chorando. Então o mestre lhe perguntou

- Você teve um pesadelo?

-Não.

- Um sonho triste?

- Não. Eu tive um sonho doce.

- Então por que chorava?

- Porque o sonho que tive nunca vai se realizar”

Há outros filmes de prestígio que envolvem a máfia mas não fazem dela o centro da narrativa. Um ótimo exemplo é A Bittersweet Life (달콤한 , 2005). O chefe de um grupo criminoso desconfia do comportamento da jovem namorada e coloca um homem de confiança para vigiá-la enquanto viaja à China a negócios. O cão do chefe testemunha a infidelidade, mas solitário, fraqueja diante dos atraentes trejeitos da moça e esconde o fato do seu líder. Furioso, o patrão decide cortar seu braço direito no sindicato criminoso, condenando-o por uma desobediência menor. O guarda não gostou do descarte após anos de servidão e vai atrás de… claro, vingança.

greenfish

Outro bom filme com argumento semelhante é Green Fish (초록 물고기, 1997), com o jovem Mak-dong a caminho de casa após cumprir o serviço militar obrigatório. Ao testemunhar a degradação da sua família enquanto esteve fora em seu compromisso com a sociedade – o irmão virou um bêbado briguento, a mãe passou a trabalhar de empregada doméstica, a irmã é garçonete –, procura atalhos para o dinheiro fácil e acaba por se envolver com o crime organizado, pior, com a mulher do chefe, mudando sua vida para sempre. Bittersweet é um filme de ação dramático, Green Fish se escora mais no drama.

ROMANCE:

Oasis

♪ “- Estou indo a um encontro! Você está precisando se divertir. É domingo, mas está preso aqui! Você não tem nenhum encontro! Mas que falta de sorte!” ♪

Lee Chang-dong, paralelamente ao seu papel como cineasta, ocupou o cargo de Ministro da Cultura da Coreia do Sul entre 2003 e 2004. Em seu filme mais contundente, Oasis (오아시, 2002), apresenta a história de Hong Jong-du a partir do dia em que foi libertado da cadeia após detenção por atropelamento e fuga. Rechaçado pelos parentes, ele vai atrás da família vitimada pelo acidente, quando conhece Gong-ju, filha da vítima, portadora de paralisia cerebral por quem se apaixona. Testemunha-se o desenvolvimento altamente improvável do amor, não entre pessoas de alto capital estético, bem articuladas e italianamente bem vestidas, como típicos personagens das novelas coreanas, e sim o amor desperto entre párias da sociedade, um ex-presidiário e uma deficiente mental.

Em Oasis há cenas muito bonitas, como naquelas quando, na imaginação, a deficiente fica normal e imita o comportamento dos casais vistos ao redor, a despeito de na prática continuar gerando afastamento. Expõe o teor subjetivo do amor e suas relações com o mundo objetivo, externo às perspectivas dos amantes, que vivem uma ilusão a dois. Segundo o autor, um filme sobre fronteiras. Mas um filme duro, incômodo, mexe com algo na natureza humana que está silenciosamente presente para repugnar qualquer ameaça à perpetuação e evolução da espécie. O final, uma cacetada.

shigan

“Perdoe-me por te obrigar a ver sempre o mesmo rosto”

Time (Shi Gan, 2006) é um filme muito forte acerca da febre coreana pelas cirurgias plásticas. A insegura e ciumenta Sae-hee não suporta os olhares – reais ou imaginados? – do namorado Jin-woo direcionado às outras mulheres e a ideia de poder perdê-lo. Após uma crise, ela desaparece e remodela seu rosto à base do bisturi, em uma das incontáveis clínicas que pipocam em Gangnam e outros bairros dos endinheirados da Coreia. Armada com sua nova e irreconhecível face, Sae-hee tentará conquistar novamente o parceiro que se julgou abandonado. Como ele reagirá? Assista para saber. O filme tem um olhar artístico e extremo sobre a louca crise de identidade das coreanas que acreditam precisar do rosto de uma estrela do Kpop, geralmente 15 ou 20 anos mais nova, para manter ou conquistar algum valor na sociedade.

more than blue

É indiscutível o pioneirismo das novelas coreanas na Hallyu. Suas tramas saturadas de situações dramáticas ou mesmo fúnebres conquistaram multidões na Ásia e ganharam adeptos na internet por todo o mundo. Não é tanto a minha praia, mas aos fãs dos dramalhões ao estilo coreano, a pedida é More than Blue (슬픔보다 슬픈 이야기, 2009). O produtor fonográfico K e a compositora Cream passam a morar juntos, ambos com um passado atribulado nas costas e largados no mundo, um acalentando a solidão do outro. Uma doença terminal, no entanto, se intromete entre os dois e introduz um terceiro elemento no trágico triângulo amoroso. Um legítimo K-drama compactado no espaço de um filme. A trilha sonora está nas mãos do famoso cantor de baladas Kim Bum-soo, com trabalhos em Stairway to Heaven e Secret Garden, populares novelas da SBS. Ouça clicando aqui.

boyfriend is type B

O romance Il Mare (시월애, 2000) foi popularizado pelo remake americano. Conta a história da trocas de cartas através de uma caixa de correio mágica entre um homem e uma mulher, solitários e separados pela dimensão temporal (ele vive no passado). Eu não gosto, mas existem também as comédias românticas sob uma fórmula absolutamente americanizada. My Sassy Girl (기적인 그녀, 2001) é uma comédia finalizada em drama, enquanto 100 Days With Mr. Arrogant (내 사랑 싸가지, 2004) mantém o tom descontraído até o término e faz algumas piadinhas mais picantes.

CINEMA ~CULT~:

primavera...

“A luxúria leva ao sentimento de posse, e o sentimento de posse leva à morte”

Kim Ki-duk é um caso emblemático. Semi-desconhecido na Coreia do Sul, é o mais famoso dos diretores do país nos círculos acadêmicos e nas salas de cinema cult do Ocidente. O estilo do diretor em alguns filmes justifica a fama, com o uso prolongado do silêncio em tramas quase ausentes de falas, simbolismos orientais, escolha por locações espetacularmente belas, bem como os seus ângulos. Além de uma boa dose de pretensão artística, ora muito bem usada, ora nem tanto. De certo modo ele incorpora características que estereotipam o cinema oriental e isso abriu certas portas para ele na Europa. O mais curioso é que, diferente dos outros diretores coreanos, de formação técnica escolarizada, Ki-duk é filho de operários pobres e saiu da massa trabalhadora, sem treinamento, para representar a “alta cultura” coreana fora de casa, ainda que tenha predileção pelo uso de personagens marginalizados.

Bow

Sua obra maior é Primavera, Verão, Outono, Inverno e… Primavera ( 여름 가을 겨울 그리고 봄, 2003). Nesta parábola do pensamento budista, um monge e seu discípulo vivem em um templo flutuante em meio às montanhas. Os ciclos das estações marcam o amadurecimento do aprendiz e a imbatível impermanência de tudo. É imprescindível para o real entendimento do filme ter conhecimento do significado por trás dos simbolismos nele usados, por isso recomendo que leia alguns textos explicativos ao término da exibição.

Por exemplo, ocidentais em geral desconhecem o galo como representação do desejo, do apego e da posse, um dos três venenos da mente na concepção do budismo Mahayana. Ki-duk faz isso durante a maior parte do filme, comunica com símbolos, signos, raramente com palavras. Ele joga um galo na cena e você que se vire para saber o seu sentido. Minha dica é: sinta o filme, intelectualize depois com a ajuda de alguém, uma vez que fica impossível sem repertório budista. Um Filme dele muito semelhante em execução é O Arco (활, 2005).

chunyang

A tradição puramente nacional também é representada no cinema. Pansori é um gênero de música folclórica coreana responsável pela transmissão da tradição oral da nação através da narração melodiosa de histórias clássicas. Executado por um cantor e um acompanhante no tambor, o Pansori canaliza as vibrações da história da Coreia, suas glórias e também suas muitas dores. Os americanos via de regra classificam essa tradição, tombada como Patrimônio Imaterial da Humanidade, como o correspondente coreano ao seu Blues, pela interpretação entristecida e carregada de sentimentos das canções mais consagradas. Im Kwon-taek resgatou esse monumento da cultura coreana, desprezada e esquecida pela juventude globalizada, em filmes que tragaram multidões ao cinema.

Sopyonje

“Durante a colonização, o enka japonês. Agora com a libertação, a música pop dos yankees. Não há futuro para o Pansori”

Sopyonje (, 1993) é o mais celebrado deles. Relata as privações materiais de uma família dedicada a manter viva a tradição oral do país na década de 50, após a domesticação promovida pelo Império Japonês e em meio à invasão cultural americana. Na miséria, profanam a tradição e atrelam a música à venda de produtos e festanças alcoólicas de engravatados, mas nem assim os coreanos parecem ter olhos para o seu passado. A dedicação do mestre ao Pansori, porém, se alça a níveis doentios e germina uma tragédia, como dita a cartilha do gênero. Durante o percurso do filme, são apresentadas as nuances da performance e a profundidade teórica do Pansori.

Em 2000 o mesmo diretor lançou Chunhyang (춘향뎐), a mais trágica e popular história de amor da Coreia, transmitida oralmente desde o reinado de Sukjong, entre o herdeiro de um governador, jovem aspirante a burocrata, e uma bela filha de cortesã. Em ambos os filmes o espectador vê uma história dentro de outra história, apresentada com a estética pansori, e a narrativa dentro da narrativa ajuda a explicar o filme. As passagens clássicas das músicas se harmonizam com as situações vividas. ADVERTÊNCIA: os dois filmes possuem muitas, mas muitas partes cantadas sob um ritmo adestrado, parecem durar o dobro do tempo. Apesar de bons, é preciso paciência com eles e com o Pansori. Para a grande maioria, é bem provável que o jeito de cantar encherá o saco. Recomendo só aos entusiasmados pela cultura tradicional do país. Ou que assista aos poucos.

A RELAÇÃO COM A COREIA DO NORTE:
SHIRI, JOINT SECURITY AREA E A IRMANDADE DA GUERRA

Shiri

“- Havia gente que pensava como você em 1950. Lembra da dor que a guerra causou a este país?

- Lembro muito bem. Ficamos 50 anos à mercê destes políticos. Infelizmente, eles não querem a reunificação. É como se eu visse uma peça muito bem articulada.

- Não se engane. Não é o único que deseja a unificação. Temos que esperar o momento certo.

- ‘Esperamos pela unificação. Sonhamos com ela’. Enquanto vocês cantam essa canção, nosso povo no Norte está morrendo nas ruas. Sobrevivem com raízes e cascas de árvores. Nossos filhos estão sendo vendidos. Já viu pais comerem a carne dos seus filhos mortos? Com Coca-Cola e hambúrgueres vocês não saberiam…”

Titanic obteve um desempenho de público que fez jus ao seu nome em todos os países, exceto em um, na Coreia do Sul, onde foi superado em bilheteria pelo filme local Shiri (,1999). Nele, uma tropa de elite treinada no Norte se infiltra no Sul com o objetivo de cometer um atentado terrorista a servir de gatilho para o início da Segunda Guerra da Coreia. O objetivo era forçar um conflito que desse início ao processo de Unificação. Para tal, os norte coreanos infiltrados roubam uma arma secreta do governo de Seul. O gatilho inicia uma corrida entre os objetivos dos homens do Norte e a inteligência policial do Sul, em uma história de ação hollywoodiana com MUITA ação, mesclada com um romance, o blockbuster coreano inaugural.

Shiri foi o primeiro de muitos filmes que exploraram a traumática divisão do país na nova fase da criação audiovisual coreana. Ao contrário das películas de propaganda do período militar, que expunham o povo do Norte como comunistas desalmados e traiçoeiros, a nova onda prefere se referir a eles como irmãos do norte, vitimados pela ditadura hereditária dos Kim e separados por influência de forças políticas forasteiras, como os EUA e a China, responsáveis por tratar as Coreias como torres no tabuleiro geopolítico. Esse filme usa dois peixes como metáfora. O Kissingumi representa as Coreias como são hoje. Se separados dos seus pares, morrem, mas seus beijos são na verdade lutas territoriais (dois projetos distintos de unificação). Já o Shiri, que nomeia o filme, é um peixe exclusivo das águas coreanas e simboliza aqui o desejo de unificação sem interferências de potências estrangeiras. Assistam ao filme com isso em mente.

JSA

“Você ainda não aprendeu muito sobre Panmunjeom. Aqui, a paz é preservada pela ocultação da verdade. O que os dois lados realmente querem é que essa investigação acabe em nada”

Outro igualmente relevante que dá atenção à problemática atual das Coreias é Joint Security Area (공동경비구역, 2000). Na zona desmilitarizada que fraciona os dois países, um incidente culmina na morte de dois soldados norte-coreanos. Entre acusações conflitantes das motivações do incidente, uma junta diplomática neutra formada por integrantes da Suíça e da Suécia tenta reconstituir a cena do crime com base em evidências que os militares de ambos os lados aparentemente preferem ocultar. Um título com menos ação que Shiri, mas com um roteiro mais sofisticado. Bom para refletir sobre a necessidade de diferenciar o desmembramento político de dois governos e a separação física do mesmo povo. Novamente os coreanos dos dois lados são apresentados como bons irmãos abatidos por uma tragédia política parida e alimentada por nações exógenas.

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“- Este é Yong-seok, ele era como seu próprio irmão!

-Tudo o que eu vejo agora é um comunista. Nenhum amigo meu mata o seu próprio povo.

- Se fizer isso, relatarei que você matou soldados desarmados. Você age como os comunistas. Vocês estão loucos, eles são reféns!

- Você viu o que eles fizeram. São animais!

- Se os matarmos também seremos animais!

- Foram eles que começaram a guerra!
– Somos iguais, nem melhores nem piores.”

Sucesso absoluto de bilheteria, A Irmandade da Guerra ( 태극기 휘날리며, 2004) nos leva de volta à década de 50. Dois irmãos sul-coreanos são convocados para lutar na Guerra da Coreia. O mais velho crente que o futuro da família depende do mais novo, estudioso, firma um pacto com o líder do batalhão: se ele conseguisse uma medalha de honra em combate, permitiriam o retorno do seu irmão. E assim uma família é arrastada para a insanidade do conflito civil armado. O título segue a cartilha cinematográfica dos filmes de guerra americanos, com muita ação, personagens milagrosamente invencíveis no campo de batalha (estilo Rambo) e a condução da narrativa direcionada ao lado emotivo. Uma megaprodução com ótima reconstituição dos cenários do certame.

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Foi o primeiro filme coreano a expor o tema com nudez visual, ao produzir cenas de amputação, espancamentos e imolação dentro de um cenário que optou por apresentar a guerra como uma barbárie lamentável e não como publicidade da superioridade moral e material de um ou outro sistema econômico, a exemplos dos filmes antigos, caso de Wildflowers of the Battlefield de 1974.

A EMPREGADA:
‘ERA DE OURO’ VERSUS ‘NOVO CINEMA COREANO’ 

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“Essa é a fraqueza do homem. Uma montanha alta o desafia a escalá-la. Um lago profundo leva-o a atirar uma pedra nele. Uma bela garota desperta seus desejos mais primitivos” (1960)

A Empregada (하녀, 1960) é o filme mais importante da história da Coreia e está para os criadores do Tae Kwon Do como Cidadão Kane está para os americanos. Um remake foi feito em 2010 e as diferenças entre as duas versões possibilitam um estudo de caso perfeito para compreender a evolução do fazer cinematográfico na península coreana. Em comum entre os dois está o esqueleto da trama, no qual uma empregada em condições materiais desfavorecidas vai trabalhar na casa de uma família e se entrega a um relacionamento proibido com o chefe da família, com conseqüências inesperadas e trágicas. A semelhança acaba aí.

Na versão original o chefe da família é um pai honrado e moralista, de posses materiais medianas, que se vê encruzilhado em um jogo psicológico perverso promovido pela empregada manipuladora, uma vilã que desmonta uma família estruturada. É mais antigo e realista, com mais tons de cinza na construção do roteiro. O comportamento da empregada é felino, mas o filme não absolve o comportamento adultero do pai. O chefe da família inclusive quebra a ‘quarta parede’ e fala diretamente com o público (o trecho acima é um fragmento), para depois transmitir lições de moral e valores familiares e cumprir seu papel de propaganda dos valores sul-coreanos, pois aqui o cinema ainda era uma extensão da propaganda estatal. A mesma mensagem ideológica embutida está presente em outros clássicos da época, como A Flower in Hell, de que a vida vivida longe da família é o caminho para a perdição (simbolizado numa meretriz que separa dois irmãos).

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“Este trabalho é revoltante, feio, nauseabundo e vergonhoso! Desperdicei a minha vida inteira nesta casa. Quanto tempo mais pensa ficar aqui? (2010)

A nova versão é a cara das atuais produções audiovisuais do país. Contém locações lindas, elenco idem, cenas de erotismo, direção explícita e um final surrealmente bizarro. Nesta, adotaram uma perspectiva maniqueísta e contrária ao visto no filme original. Aqui, a nova empregada é pintada como uma boa pessoa, inocente, vítima dos desmandos de uma família milionária e apenas superficialmente coesa. Ela se entrega ao relacionamento proibido coagida pelo patriarca sedutor, a princípio contra sua vontade. Depois se vê presa em um circo de intrigas de uma família composta por psicopatas sociais. O remake pega o cinza do original e separa preto do branco. Entretenimento bizarro, muito bem dirigido. Uma aula das diferenças entre o cinema coreano na era de ouro para o da era do entretenimento. Esta é a minha leitura das duas versões, recomenda que assista ambas. Eu prefiro o original.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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O cinema da Coreia do Sul ainda é um nanico quando colocado ao lado de potências que iniciaram a produção audiovisual há mais de um século, mas é um caso de sucesso a ser estudado por todos os coadjuvantes que esperam um dia ganhar dinheiro com exportação cultural e reforçar seu soft power, uma prática dominada com maestria por nações como os EUA e o Japão. Este post introdutório é a ponta do iceberg composto quase exclusivamente por títulos pop, mas a tradição cinematográfica coreana é mais ampla. O Korean Film Archive faz o trabalho de curadoria e recomenda dezenas de filmes em listas como estas: 50 independent films, 100 korean films (até 1996) e 100 korean films (inclui os mais recentes). Como estratégia de divulgação, eles hospedam vários destes filmes no canal KoreanFilm do Youtube com legendas em inglês para assistir de modo legal.

the king and the clown

Com um trabalho presente nas redes sociais, muitas informações sobre novidades e história do cinema coreano são compartilhadas com os anglófonos, por profissionais da área ou fãs, no site KoBiz e nas páginas do Facebook Korean Film CouncilModern Korean Cinema, Korea on the CouchHanCinema,  entre outras. Fora a infinidade de blogs dos fanáticos pela Kculture. Os coreanos sabem se vender muito bem, tornam o conteúdo deles acessível a todos que dominam a língua de Shakespeare. Os caminhos existem, basta querer viajar.

dirtycarnival

Para finalizar, devo humildemente reconhecer que eu sou um iniciante no assunto e há um pouco de pretensão em escrever um texto inicial a respeito de toda a produção cinematográfica de um país sem ter assistido nem uma centena de exemplos. Ainda não consumi diversos clássicos ou títulos famosos que o leitor possivelmente sentiu falta. Também tenho pouca quilometragem nas produções mais recentes e no cenário indie, e sequer resvalei no assunto do cinema produzido pela Coreia do Norte (sim, existe). Meu objetivo aqui foi introduzir o tema aos que desconhecem, estabelecer diálogo e aprender com os comentários dos fãs do cinema da Coreia.


Otakismo – O fenômeno kawaii: por que o Japão é o ‘Império da fofura’?

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Otakismo KawaiiMoe moe kyun!

“Assim como Disney romantizou a natureza em relação à sociedade industrial, os japoneses romantizaram a infância em detrimento da idade adulta. Por idolatrar a infância e seus resquícios, os jovens japoneses implicitamente amaldiçoaram seus futuros como indivíduos adultos na sociedade” (Sharon Kinsella)

No Japão, a atração pelo kawaii (可愛い, lê-se cauaí) é uma força neo-romântica onipresente e poderosa. Os japoneses nascem e crescem observando uma paisagem saturada de algodão doce. Publicidade, mascotes, displays digitais, embalagens… Tudo está contaminado pela estética kawaii. O Japão de “Império dos Sentidos” rapidamente se converteu em “Império do Kawaii”. Mas afinal, o que significa isso? Traduzir conceitos do japonês é sempre uma tarefa ingrata. “Cute” ou “bonitinho” apenas resvalam a superfície do termo. São necessários parágrafos para explicar o real significado dessa palavra no imaginário japonês, com a certeza de não esgotá-la. Não há léxico correspondente nas línguas ocidentais. Neste texto procuro definir de modo profundo o significado do termo, introduzir o estudo de caso da Hello Kitty, rastrear brevemente sua história, e amarrar isso tudo a partir de algumas explicações sociológicas a respeito de sua disseminação na sociedade japonesa.

DEFINIÇÃO: O QUE SIGNIFICA “KAWAII”?

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Kawaii é um conceito amplo, ele permeia o bonitinho, pequenininho, simples, mesmo tolo. É algo pueril, que remete à infância. A apreciação do kawaii celebra comportamentos sociais e aparência física que tendem à doçura, adorabilidade, genuinidade, inocência, pureza, gentileza, vulnerabilidade, fraqueza, carência e inexperiência. Mais do que aparência, tem a ver com empatia e comportamento. O significado do termo é ambíguo e seu uso, variado. É empregado para descrever pessoas, objetos, plantas, animais ou modos de agir. Kawaii é também um modo de falar, um estilo de vida, um comportamento jovem. Exato, o kawaii não se expressa apenas no design, nas artes plásticas, na publicidade e nos produtos de consumo – que vão de material escolar a produtos bancários -, mas é testemunhado na conduta e mesmo na sexualidade dos nipônicos. Um cachorro fofinho? É kawaii. Uma menina tímida? Kawaii. Uma personagem de mangá atrapalhada? Kawaii. Um chapéu bonito? Kawaii. Um sorvete de tutti-frutti? Kawaii. Com o tempo os japoneses estão abrindo cada vez mais o leque de possibilidade de uso do termo.

Meninas de comportamento kawaii aparentam (não necessariamente possuem!) a maioria dessas características: passividade, vulnerabilidade, carência, desamparo, impotência e inexperiência. São doces, GENUÍNAS – essa palavra é importante -, reservadas, obedientes e irresponsáveis.  Em casos mais sérios, entortam os joelhos, fazem biquinho, olham de baixo para cima desnorteadas, batem o pé e falam com voz doce, beirando a tolice. Mesmo no colégio, onde são forçadas ao processo de padronização com os uniformes de marinheira, dão um toque infantilizado numa presilha, num modo de amarrotar a meia.

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Diferente da “beleza”, caracterizada pela “raridade”, “distância” e “inacessibilidade”, o “kawaii” é interpretado pelos apreciadores como “próximo”, “cotidiano” e “material”. Ele atrai afeição em vez de admiração. O kawaii rejeita pedestais, por isso os membros de grupos femininos como AKB48 e Morning Musume são escolhidos a dedo para aparentar como garotas ordinárias que poderiam estar sentadas ao nosso lado na escola. Dentes tortos e franjinha são festejados. O kawaii também é mutável e possui nichos. Nos anos 80, por exemplo, ele era puramente infantil. Na década de 90 passou a ser mais andrógino e cômico, atualmente ele é mais “street fashion”. Há subdivisões, casos do erokawaii, busukawaii, kimokawaii, mas nisso não me alongarei. Na cultura kawaii, o lado mais perverso da infância também é emulado em casos extremos, como a automutilação. De modo geral, é o oposto do usualmente praticado pela indústria cultural dos EUA e a noção de “diva”, e em parte pelas agências de K-pop na Coreia do Sul.

A atração pelo infantilismo é transcultural e já explicada pela Psicologia Evolutiva. A atenção antes dada à proteção da prole saudável hoje é expressa pela afeição por eles, já que não precisamos mais escondê-los de ursos e cobras nas cavernas. Estudos sugerem que observar traços desproporcionais capazes de remeter à lembrança de bebês, mesmo em coisas ou vidas inumanas, estimulam a mesma região cerebral responsiva ao sexo, alimentos saborosos e drogas viciantes. Os americanos de fato criaram o Snoopy e os coreanos a Pucca, personagens essencialmente kawaii. No Japão, todavia, a proporção é outra. O bonitinho não é restrito às crianças. Exemplifico:

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O Partido Comunista de Nagoya adotou uma girafa kawaii como logo nas eleições nacionais de 1993. As poderosas Forças de Autodefesa do Japão usam uma mascote kawaii chamado Prince Pickles para promover suas atividades, assim como quase todas as províncias possuem suas mascotes. O Partido Conservador usa as meninas do AKB48 para propagandear política em Tóquio. Bancos e seguradoras vendem serviços financeiros sob esta estética. Mecanismos kawaii são usados em placas informativas de assuntos sérios (risco de incêndio ou cartazes de busca de terroristas), protestos contra as bases militares americanas, ou mesmo em situações de repugnância, como em casos de estupro de menores.

“Usados sem hesitação por adultos e crianças, em espaços públicos e privados, antes mesmo de nos darmos conta, esses personagens se tornaram parte de nossa paisagem diária. Pode-se encontrá-los, por exemplo, impressos em cadernetas de movimentação bancária, em passes de trem, e, como indica a presença normal e aparentemente natural de bichinhos de pelúcia em estações policiais, eles se incorporaram à vida diária do Japão de um modo que seria inimaginável em outros países” (Fundação Japão)

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Existem infinitas estampas kawaii em preservativos usados no ato sexual (foto acima), último momento no qual um ocidental gostaria de transparecer infantilidade. Na pornografia japonesa, mulheres mais velhas invariavelmente emulam o comportamento de meninas inábeis e ingênuas, enquanto os animes, mangás e jogos eletrônicos eróticos com freqüência ilustram crianças claramente pré-púberes praticando atos sexuais (tolerado pela legislação do Japão). O uso irrestrito na publicidade é evidência da penetração dessa estética na sociedade, pois a propaganda tende a adotar discursos, valores e trends já consagrados pelo status quo vigente. E nada melhor para exemplificar a divulgação do conceito kawaii que ela, a Kitty-chan.

ESTUDO DE CASO:
A MARCA BILIONÁRIA CHAMADA HELLO KITTY

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 “Tamanha é a simplicidade da concepção desta personagem, que chega a ser difícil descrever a Hello Kitty. Seu desenho é tão básico, tão sem efeito de volume, que qualquer criança é capaz de desenhá-la. Kitty é uma gatinha branca, de pequenos olhos, sem boca, e com um laço do lado direito da cabeça. Foi com tal aparência zen que ela conquistou o mundo, e permitiu que a empresa Sanrio construísse um império internacional” (Cristiane Sato)

Kitty-chan é uma gata antropomorfizada criada em 1960 pela designer Yuko Shimizu, então funcionária da japonesa Sanrio, com o objetivo de estampar artigos de papelaria. Hoje a marca Hello Kitty movimenta US$7 bilhões de dólares anualmente em mais de 110 países, com dezenas de milhares de produtos licenciados (fora a pirataria). Apesar de conhecida apenas pela Kitty-chan no Ocidente, a Sanrio possui mais de 450 personagens, muitos deles populares no Japão, como Chococat, Keroppi, Tuxedo Sam, Pochacco, My Melody e Badtz-Maru. Entre os produtos licenciados, além dos óbvios cadernos, existem: parques temáticos, cafeterias, carros, jornal, preservativos e bebidas alcoólicas.  Detalhe: diferente dos personagens Disney, não havia gibi, desenho animado ou filme para alavancar o sucesso dela. Ela construiu essa fama global com a sua imagem estática nos produtos.

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Como uma personagem embasbacante de tão simples, virou um Embaixador – literalmente, pois ela foi Embaixatriz da Unicef em 1983 – bilionário da cultura japonesa? Personagens kawaii possuem ingredientes fundamentais. Devem ser fofos, pequenos, tingidos em tons pastel, arredondados, macios, leves, amáveis, preferencialmente mamíferos, sem apêndices ou orifícios corporais (nariz, braço), inseguros, perdidos, desesperançados. Confeccionados em materiais simples e infantis, como pelúcia ou plástico. Desenvolvidos sob encomenda para emular as pessoas mais fracas da sociedade.

Sob uma perspectiva técnica, um design minimalista, sem detalhes ou relevo, facilita a reprodução industrial a custo baixo. O minimalismo é importante na criação de um personagem kawaii. Deve-se excluir tudo o que é descartável na transmissão da amabilidade do personagem. Braços, boca, pescoço, qualquer coisa que dilua aspectos kawaii. Reduz o desnecessário para estourar aquele traço simples e redondinho que faz as japonesas suspirarem “kawaaaaaiiii”, naquele misto de derretimento e desejo de posse. Pensando por uma ótica de mercado, menos é mais. A Hello Kitty tem de caber até na presilha de cabelo. Os caras entendem de design…

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Alguns analistas superficialmente acusam uma “completa apropriação de estéticas ocidentais” enquanto ignoram o que realmente aconteceu: uma simbiose Japão-Oeste. A Hello Kitty, apesar de ter inspirações artísticas ocidentais, está enraizada com os dois pés no conceito japonês de Muhyo-Kyara, ou seja, de “personagem sem expressão”. Em contraste às afirmativas mascotes ocidentais, de expressões fortes, esse conceito prega feições inexpressivas capazes de levar a pessoa que se relaciona com o personagem a projetar suas próprias emoções nele. Por exemplo, a ginasial japonesa que não consegue dormir por não ter seus sentimentos correspondidos pelo amado pode se consolar com a ‘compreensiva’ Kitty-chan. Já numa segunda tentativa, dessa vez exitosa, ela poderá compartilhar sua alegria com a mesma pelúcia, a ‘amiga de todas as horas’. A Sanrio, segundo Sato, recebeu uma carta de uma garota com câncer. Nela, ela explicava que gostava da (inexpressiva) Kitty-chan por considerá-la ‘doce e afetuosa’ e por ela ser ‘alguém com quem se podia conversar’. A simplicidade ímpar da Hello Kitty encerra em si mesma uma profundidade difícil de intelectualizar, mas muito fácil de sentir.

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Mas… de onde veio a força do kawaii? Por que a onipresença no Japão? No afã de compreender essa questão, primeiro é preciso mapear rapidamente a história do século XX no Japão, depois penetrar na mentalidade cultural que moldou a nação japonesa (confucionismo, zen-budismo, etc.), onde eu precisarei ser um pouco mais acadêmico. Essa análise é surpreendente e você só verá aqui, no Chuva de Nanquim!

DIFUSÃO DO KAWAII NO JAPÃO:
UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA

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“Na raiz dessa afeição há uma sensibilidade estética tradicional e singular que é traduzida por meio de uma receptividade e predileção pela planicidade, abreviação, simbolismo e simplificação. É intrigante pensar que possa efetivamente haver uma base histórica comum entre a sensibilidade da Era Edo (1603-1868), que estava preocupada com os aspectos plano e raso do Ukiyo-e [xilogravura japonesa], e a do japonês contemporâneo, que vê os personagens de anime e mangá como entidades surpreendentemente reais” (Hiroyuki Aihara)

 A histórica afinidade japonesa pelo bonitinho pode ser monitorada por suas manifestações artísticas. Na literatura, há mais de um milênio, Sei Shonagon descreveu com clareza esse paladar pelo frágil no livro Makura no Soshi. O mesmo pode ser observado na literatura moderna do século XX, em livros do genial Osamu Dazai. O conceito Kawaii contém em si similaridades com a tradição visual japonesa, de acordo com Peek, caso do ukiyo-e, plano e sem profundidade. Além disso, dialoga diretamente com as sensibilidades  do povo japonês. Esse olhar kawaii enxerga trejeitos positivos em objetos ordinários (baratos, industriais, plásticos) ou de beleza questionável (dentes tortos ou coluna levemente vergada que humanizam a mulher), assim como o antigo conceito japonês de mono no aware cobra uma sensibilidade de apreciação em relação às coisas efêmeras, imperfeitas, simples e transitórias da vida, uma herança do pensamento zen-budista. A estética kawaii com bidimensionalidade estaria em comunhão com a sensibilidade estética japonesa tradicional.

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Entretanto o kawaii propriamente dito foi criado no fim da Era Meiji (1868-1912) e início do Perído Taisho (1912-1926), dentro da shoujo bunka (“cultura das garotas”), ou seja, quando as mulheres do Japão passaram a absorver conteúdo ocidental e a interpretá-los a partir das lentes do repertório estético-cultural japonês. Esse choque Leste-Oeste encontrou uma atmosfera político-cultural favorável a sua proliferação.

Com a ocupação do Japão pelos EUA no fim da Segunda Guerra, os produtos comerciais americanos rechearam o Japão e influenciaram a produção cultural e industrial dos asiáticos. As garotas do país de modo paulatino e espontâneo abraçaram as criações infantilizadas de ambos (mais para frente explicarei as razões mais aceitas para isso). Para a loucura dos professores, elas inventaram uma incompreensível forma de escrever, com adoção de estrangeirismos, desenvolvimento de traços arredondados e inclusão aleatória de emojis no texto cursivo. A língua oral também foi afetada, Kakkoii, por exemplo, passou a ser pronunciado propositalmente errado como katchoii, dicção de um bebê incapaz de dizer a palavra corretamente. Uniformes escolares viraram item de guarda-roupa mesmo após a formatura.

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As empresas japonesas perceberam esse momento e, sabendo do poder de compra das japonesas, adotaram essa estética como norte corporativo. Apesar da cultura kawaii não ter sido criada pelo universo business, foi por ele logo descoberta e rapidamente assimilada no início do boom consumista dos anos 70 – o auge da economia japonesa. Anualmente as japonesas gastam US$15 bilhões em cosméticos, sendo que US$2,5 bilhões são desembolsados por alunas ginasiais. O mercado abraçou a ideia e lojas como a 6% doki doki fizeram fortunas. Companhias aéreas pintaram a fuselagem de aviões 747 com temas de Pokémon e Mickey. Propagandas, embalagens, mangás, games, softwares de design incorporaram a estética. A Sanrio, detentora da marca Hello Kitty, já negociou seus personagens com mais de 20 instituições bancárias incapazes de diferenciar suas ofertas.

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Na condição de país coletivista, o Japão tende a fomentar mais a geração de ‘coqueluches culturais’ porque todos querem e precisam fazer parte de um grupo. A conformidade faz parte da adesão à estética. Mas será que só questões mercadológicas dariam conta de explicar a singularidade do caso japonês? Acredita-se que não…

“O consumo de muitos produtos de estilo bonitinho, com poderosas propriedades de indução emocional, pode ironicamente disfarçar e compensar a grande alienação dos indivíduos em relação às outras pessoas na sociedade contemporânea” (Sharon Kinsella)

O QUE ESTÁ ESCONDIDO NAS SOMBRAS DA HELLO KITTY

Analistas feministas não tardaram a acusar no conceito kawaii uma ferramenta patriarcal do Japão para manter a mulher subjugada, conformada com os valores antigos no mundo moderno. Afinal, a fêmea atraente seria aquela passiva, obediente e imatura. Novos estudos culturais de visões menos paradigmáticas estão sugerindo exatamente o oposto: a cultura kawaii é uma rebelião juvenil, uma recusa de cooperação aos valores sociais vigentes e à realidade japonesa (não que não exista uma disparidade de gêneros no Japão, apenas que essa explicação sozinha não dá conta da realidade). Sua popularização revela um escapismo passivo e consciente em relação às expectativas da sociedade e dos distintos papéis de gênero, muito mais marcantes no Japão que no Ocidente. A ala masculina demonstra o mesmo mal-estar de outros modos, como os hikikomori, majoritariamente homens. Vamos explicar isso com calma. Em um livro clássico da antropologia americana sobre o Japão (hoje contestado em alguns pontos, mas a meu ver ainda real em outros tantos), Ruth Benedict afirma:

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“[o arco da vida no Japão] É uma grande curva em U pouco acentuada, com a máxima liberdade e indulgência concedidas aos bebês e aos velhos. As restrições são lentamente aumentadas após a primeira infância, até que a satisfação da própria vontade atinge uma baixa logo antes e depois do casamento. Nesta linha prossegue por muitos anos, durante o vigor da mocidade, ascendendo gradualmente o arco de novo até que, após os sessenta, homens e mulheres acham-se tão desimpedidos pela vergonha quanto as criancinhas. Nos Estados Unidos viramos de cabeça para baixo esta curva. As disciplinas severas são dirigidas para a criança e aos poucos relaxadas, à medida que esta cresce em força, até passar a dirigir a própria vida ao arranjar um emprego que lhe garanta a subsistência e constituir lar próprio. O vigor da mocidade para nós [americanos] coincide com o ponto alto de liberdade e iniciativa. As restrições começam a aparecer quando os homens perdem o domínio, a energia, ou se tornam dependentes. É difícil para os americanos sequer imaginar uma vida arranjada de acordo com o padrão japonês. Parece-nos fugir em face da realidade.” (Ruth Benedict)

Envelhecer para o japonês não parece muito saudável: o homem estudará e trabalhará incontáveis horas, incluso horas extras e as culturais idas ao bar após o expediente (essenciais para garantir as desejadas promoções profissionais). A mulher não possui perspectivas de trabalho e está destinada ao papel de dona de casa com marido ausente. Jovens japoneses prestes a entrar na vida adulta, em sua maioria, classificam essa nova fase da vida como um período desanimador, árido demais. Temem mais que tudo o peso das responsabilidades com a família, sociedade, espaço público e política. Possuem uma visão muito nebulosa tanto do futuro quanto da sociedade japonesa. A vida adulta, diferente do Ocidente, não é vista como um período de liberdade e emancipação pessoal, muito pelo contrário, a fase é vista como décadas de claustro que limita as potências individuais apaga os sonhos e força o indivíduo a aceitar o destino imposto por outrém. Em pesquisas no Japão, a população atribuiu à vida adulta valores fundamentalmente vistos como negativos: solidão, responsabilidade, falta de tempo livre, excesso de trabalho, desaparecimento dos sonhos.

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O que dá suporte à cultura kawaii é a noção romântica da infância como período puro, intocável, sem maldade. Yuuko Yamaguchi, gerente geral do departamento de character-design da Sanrio, diz que a estética kawaii cristaliza a vontade do japonês de nunca querer crescer, de permanecer no estágio infantil, de não abrir mão da candura, uma vez que a vida de adulto no Japão, mais do que em qualquer outra cultura, é um tempo extremamente penoso, de muitas responsabilidades e pressões (um país do tamanho do Mato Grosso do Sul, sem recursos naturais, que por muito tempo foi a 2ª maior economia do mundo).

“Maturidade, que no Ocidente tem sido associada à autoridade e direitos individuais, ainda tende a ser pensada de acordo com o modelo confuciano no Japão moderno. Ou seja, a maturidade é geralmente vista como a capacidade de cooperar bem dentro de um grupo, aceitar compromissos, cumprir obrigações com os pais e funcionários, e assim por diante” (Sharon Kinsella)

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Essa infantilização da aparência que causa espanto no ocidente é justamente o que atrai o japonês. A criança, o assexuado ou a virgem é livre de responsabilidades e papeis sociais complexos e exigentes. Um adulto que, numa sociedade coletivista, se entrega aos seus desejos e fraquezas pode ser visto como moralmente fraco e egoísta. A cultura kawaii representa a vontade de criar uma sociedade horizontalmente estruturada, mais amigável e guiada pelas emoções, em detrimento da ânsia racional, expansionista, hierarquizada e baseada no poder que caracterizou o Japão do passado.

A sociedade e a família japonesa, tendo consciência do espinhoso cotidiano dos adultos japoneses, consideram a infância um momento da vida absolutamente idealizado, portanto permitem aos seus rebentos momentos de felicidade idílica antes que eles cresçam e encarem o quase desumano estilo de vida japonês. Cria-se um ciclo vicioso, onde algumas crianças, após uma infância artificialmente açucarada, sucumbem quando encaram a dura realidade da vida adulta, e, sofrendo síndrome de Peter Pan, consideram que ser adulto é intolerável, criando para seus próprios filhos a mesma tenda idílica para que eles aproveitem os únicos anos da vida que supostamente valem à pena. A ideia de que o comportamento kawaii é natural da pessoa, foi suprimido pelos deveres sociais e urge achar rachadura por onde pode liberar a tensão.

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Diferente do uso da insinuação sexual por parte da juventude ocidental como meio de afirmação de maturidade que elas ainda não possuem (Miley Cyrus, Vanessa Hudgens), os jovens japoneses caminham no sentido oposto, enfatizando sua imaturidade e incapacidade de lidar com as responsabilidades da vida adulta, mesmo quando já as possuem. Meninas querem casar por amor, e não mais por compromisso. Adultos querem a ‘pureza perdida’. Políticos desejam de afastar do passado expansionista do país, a oposição quer condenar o status quo. Cada um encontra um uso particular para a mesma estética.

“Comportamento infantilizado foi considerado genuíno e puro [pelos entrevistados japoneses] – o que implica que as experiências e relações sociais adquiridas após a maturidade foram consideradas como formadoras de uma falsa superfície externa (…) embora, ironicamente, o bonitinho seja extremamente artificial e estilizado” (Sharon Kinsella)

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Muitos intelectuais que estudam o Japão chamam a atmosfera kawaii do pós-guerra de uma contracultura passiva e paradoxal. Passiva porque, apesar de rejeitar o status quo, não tem a menor intenção de desconstruir o sistema social e colocar algo diferente no lugar, apenas pede que não solicitem sua colaboração. Os adeptos dessa cultura, em maior ou menor grau, são críticos da autodisciplina, da tolerância ao destino e das condições severas impostas pelo jogo social (que, faço questão de ressaltar, podem ser extremas no Japão). Paradoxal porque mantém estreitos laços estéticos e comerciais com a cultura que parece rejeitar. Como afirma Kinsella, negam a “falsidade do convívio social”, mas adotam como expressão da “pureza” algo ainda mais artificialmente arquitetado, idiossincrasias naturais de um termo tão abrangente.  É necessário também deixar claro que essa postura não é consciente. Ninguém ou praticamente ninguém no Japão adota traquejos infantis com essa lucidez. Não é um ato político dessa juventude, longe disso, até porque eles estão muito mais para a alienação absoluta do que para uma consciência superior. É uma tentativa de compreensão de uma postura comportamental abstrata.

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A estética kawaii também possui outras funções sociais secundárias e generalizadas. É um fluido lubrificante da comunicação, sobretudo quando envolve assuntos desagradáveis, ainda que isso possa ser usado de modo perigoso. Afinal, se o jovem não se interessa por política, a figura muda de cena quando o assunto é pautado pelo grupo AKB48 em Akihabara. A aparência pode se sobressair à essência. Outro uso social é a anulação do self, como uma máscara. Muitos japoneses se escondem socialmente atrás do véu socialmente aceito do ‘kawaii’ para não mostrar seu verdadeiro eu. Inclusive alguns estudos de cultura organizacional (a cultura praticada dentro das empresas) demonstram que a manifestação kawaii, no comportamento profissional ou na customização do ambiente de trabalho, é maior em empresas pequenas, onde o relacionamento e a exposição pessoal é maior (logo, precisam de maior proteção do olhar alheio), do que em grandes multinacionais, onde a tarefa de tornar as relações impessoais é toda guiada por processos e sistemas (horário, crachá, porta automática, relatórios padronizados, etc). Muitas mulheres inclusive afirmam fingir fragilidade kawaii para evitar broncas dos superiores.

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“Kawaii é mais do que os seus diplomatas (Hello Kitty, Pikachu, Sailor Moon, etc.) que resumem a perspectiva global sobre a cultura popular japonesa. Sob a superfície de seu uso superficial como uma ferramenta de capitalismo consumista, [o conceito] kawaii atua como um lubrificante social onipresente. É uma forma de expressão que permite que o indivíduo japonês, mesmo que apenas por uma pequena fração, viva fora da exigente natureza de pressões sociais de uma forma não-combativa e socialmente aceitável.” (Cameron Peek)

Por fim, a estética kawaii pode ser usada inclusive para desconstruí-la de dentro. Muitos publicitários usam esse conceito como paródia de si mesmo em suas criações, com recortes e spoofs. Nas artes plásticas, o movimento Superflat do Takashi Murakami aponta violentamente seus dedos para a obsessão pelo kawaii que impregnou por toda a cultura japonesa – ainda que ele lucre milhões de dólares com essa massificação, numa postura tão dúbia quanto a das adolescentes japonesas que rejeitam certos valores da sociedade pagando fortunas pelas válvulas de escape que ela oferece.

Escrevo pílulas sobre cultura japonesa no perfil @JapopOtakismo. Sigam!


Fontes:

Um dia na vida do Japão, o Kingdom of Characters (Hiroyuki Aihara)
Japan, Kingdom of Characters (Exposição da Fundação Japão)
Cuties in Japan (Sharon Kinsella)
Japop – O poder da cultura pop japonesa (Cristiane Sato)
Kawaii as represented in scientific research: the possibilities of kawaii cultural studies (Kyoko Koma)
Capitalizing on “cuteness”: the aesthetics of social relations in a new postwar japanese order (Leila Madge)
Kawaii Aesthetics: the role of cutiness in Japanese society
Exploring kawaii in a sample of Japanese college women: a mixed-methods study (Stephanie Klapper)
Tokyo Girls (Patrick Macias/Izumi Evers)
O Crisântemo e a Espada – Padrões da cultura japonesa (Ruth Benedict)
Japanese schoolgirls: how teenage girls made a nation cool (Shoko Ueda/Brian Ashcraft)
Expression of kawaii: gender reinforcement of youth Japanese female school children (Yuko Asano-Cavanagh)
Exploring Japanese art and aesthetics as inspiration for emotionally durable design (Pui Ying Kwan)


Otakismo – Clássicos: Túmulo dos Vaga-lumes (Studio Ghibli)

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Hotaru no Haka HeaderUm dos maiores clássicos do Ghibli chega na coluna Otakismo.

“- Nós já trocamos todos os quimonos da nossa mãe por arroz, você costumava aceitar dinheiro…
– Não é uma questão de quimonos ou dinheiro. Sou um fazendeiro, mas mesmo eu não tenho comida sobrando para compartilhar”

Em abril de 1988, o Studio Ghibli lançou duas animações de maneira simultânea no Japão. A estratégia era diminuir o risco financeiro do estúdio, já que o eventual fracasso de um projeto poderia ser amortecido pelo sucesso do outro. A aposta encarada como a mais arriscada era a dirigida por Hayao Miyazaki, o alegre e aconchegante “Meu Vizinho Totoro” (Tonari no Totoro). O título visto como a ‘vaca leiteira’ daquela primavera foi o sóbrio e soturno “Túmulo dos Vaga-lumes” (Hotaru no Haka), sobre as vítimas civis japonesas da Segunda Guerra Mundial.

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Totoro acabou sendo um sucesso financeiro, enquanto Hotaru no Haka fracassou em bilheteria. Todavia, após o filtro do tempo, este segundo ganhou respeito pela sua qualidade e teor educativo. A despeito de ser uma animação, é unânime a opinião de que Hotaru no Haka é uma das obras japonesas anti-guerra mais pesadas e significativas já criadas.

A animação como mídia, mesmo a japonesa, costuma apresentar uma abordagem lúdica, explorar o fantástico e entregar entretenimento ao público. Hotaru no Haka, porém, é um filme animado realista, cru e cruel. É comum os espectadores relatarem choro ou que seus humores foram lançados ao chão após assistirem. Corpos carbonizados cobertos de larvas e moscas, espancamentos infantis, fome e destruição urbana são apenas as formas de impacto visual. Outro golpe, igualmente profundo e pouco palpável, é a desintegração do tecido social em tempos de guerra. Os bombardeios nucleares monopolizaram a atenção do mundo a respeito das vítimas japonesas, o que torna pouco conhecido do público médio o horror vivido em todo o Japão, não só em Hiroshima e Nagasaki, durante os dois últimos anos do embate.

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É a partir da interpretação desse anime (meu favorito) que gostaria de desenvolver uma ideia bastante discutida entre os historiadores de Japão: a percepção de que centenas de milhares de japoneses – talvez milhões – morreram na primeira metade do século XX vítimas não apenas da guerra, mas também da cultura japonesa. Sendo mais preciso, vítimas da distorção que os militares e educadores japoneses fizeram da história e da cultura nipônicas, sobretudo a respeito do legado dos samurais.

Mas o que os samurais têm a ver com a Segunda Guerra? Tudo, e esse espetacular filme do Ghibli vai te ajudar a entender essa escondida e perversa conexão. O  texto contém todos os spoilers, pois desenvolverei uma análise em cima dos elementos do filme. Encare-o, caso não tenha assistido, como um convite ao ato (ainda que, por ser baseado em fatos reais, o andamento já é previsível).

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Túmulo dos Vaga-lumes, dirigido por Isao Takahata, foi inspirado no premiado livro homônimo e semi-autobiográfico de Akiyuki Nosaka, lançado em 1967. Narra a história dos irmãos Seita (14 anos) e Setsuko (quatro anos) em Kobe entre os anos de 1944 e 1945, durante a guerra. O pai deles está fora de casa enquanto luta no Pacífico junto à Marinha japonesa, já a mãe foi vítima de um ataque aéreo americano.

Um adolescente e uma criança, então, são largados à própria sorte durante o período mais difícil da guerra para os civis japoneses: quando as Forças Aliadas realizaram inúmeras investidas aéreas indiscriminadas (do mesmo modo que o Japão fazia no resto da Ásia, que fique claro) e despejaram quase duas mil toneladas de bombas incendiárias nas principais cidades, com o objetivo de queimar as casas de madeira dos japoneses e minar a mão-de-obra do inimigo. Alimentos e recursos foram severamente racionados, moradias queimadas e muitas pessoas morreram ou ficaram anos desaparecidas.

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“Hotaru no Haka (火垂るの墓) “cemitério dos vaga-lumes” pelo padrão seria escrito 蛍の墓, com o kanji para “vaga-lume”. Mas aqui hotaru está escrito como 火垂 “gotas de fogo”, em referência aos bombardeiros americanos que desencadeiam a trama. O som é idêntico mas há dois sentidos paralelos, um deles ilustrado visualmente.” (Leonardo Boiko)

Seita e Setsuko a princípio vão morar com uma tia distante, mas lá se deparam com outro lado perverso e pouco difundido sobre os tempos de guerra, a insensibilidade humana em relação aos seus próprios conterrâneos. Por não poder “trabalhar pela nação”, já que tinha de cuidar da pequena irmã, Seita era constantemente hostilizado pela tia, com broncas, insinuações e privação de alimentos.

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Neste ponto do filme torna-se claro o argumento tanto do livro quanto da própria animação. A noção de que o tecido social descosturou em seu ponto mais fraco, as crianças. Hotaru no Haka joga luz na história das mais de 120 mil crianças japonesas tornadas órfãs por conta do conflito mundial. Muitas foram prostituídas, escravizadas, agredidas e/ou negligenciadas. Abusadas por parentes distantes ou tutores, inúmeras fugiram de casa e viveram de mendicância ou pequenos crimes. O filme as mostra como vítimas não apenas da guerra, mas da estrutura social insensível do período de guerra. As privações materiais revelaram o pior do lado humano não só entre inimigos.

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Ultrajado pela perseguição promovida pela tia, Seita pega as economias bancárias da mãe e vai viver com a irmã em um tipo de gruta, na rua. Lá, estariam protegidos das bombas e também dos adultos entorpecidos. Lá, viveriam como bem entendessem. Lá, poderiam comer quanto arroz branco pudessem comprar com as economias da família, não mais o mingau ou o caldo ralo servido pela megera da tia.

A realidade passou um rolo compressor nessa escolha. Os parcos alimentos produzidos no Japão eram prioritariamente enviados para os soldados em batalha. Dinheiro e objetos caros não têm valor em um contexto de fome e comida passa a ser a única moeda de troca possível. Os irmãos precisam improvisar e passam a comer rãs, estratégia insuficiente para prevenir a desnutrição da pequena Setsuko.

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Ela morre. A mãe já havia falecido. O pai deles encontrou seu fim no mar. O Japão perdeu a guerra e a Constituição Imperial foi substituída por uma redigida pelo inimigo. Parentes, país e ideologia, tudo o que atribuía sentido à vida de Seita naufragou em 1945. Restou a ele se entregar também à morte, como os samurais de quem falavam na escola.

O foco infantil de Hotaru no Haka não foi escolhido com o único intuito de sensibilizar. A motivação é ainda mais triste. O escritor do livro, Nosaka, sobreviveu à guerra por comer todos os alimentos que deveria ter compartilhado com a irmã Keiko. Ela morreu por má nutrição e o autor, consumido pela culpa, escreveu o livro como uma espécie de exorcismo desse sentimento e homenagem à falecida irmã, que pagou com a vida a sobrevida do irmão.

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Uma análise mais acurada de Hotaru no Haka fomenta uma ideia perturbadora: Seita, a pessoa que mais sofreu no decorrer do filme, é tanto vítima quanto vilão. A conclusão não pode ser diferente, Seita matou a irmã Setsuko. Ou melhor, a ideologia que implantaram na cabeça de Seita custou a vida de Setsuko. Que ideologia era essa? O código do guerreiro samurai, junto ao nacionalismo, à divindade do Imperador e à ideia de superioridade da raça japonesa. Vamos desenvolver essa ideia.

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“Após a Restauração Meiji de 1868, o sistema de classes no Japão foi abolido, o que significou a extinção do samurai enquanto classe. No entanto, o Bushido não desapareceu, mas teve seu segundo turno como uma Moral Nacional. Na época do sentimento público de dominação militarista e nacionalista no Japão (1930-45), o Bushido foi um poderoso instrumento de impacto ideológico na sociedade japonesa”

Após passar 250 anos completamente isolado sob o comando militar da classe guerreira (o Shogunato Tokugawa), o Japão foi forçado a abrir suas fronteiras para o comércio, extinguiu a divisão social por classes e instituiu o Estado Moderno no final do século XIX. Com medo de ser colonizado por alguma potência ocidental, como aconteceu com quase todos os países da Ásia na época, o Japão buscou a rápida modernização industrial, militar, científica e financeira. Em um país pequeno e de recursos escassos, isso resultou em expansionismo e colonização. O Japão se tornou aquilo que temia nos outros. Invadiu, dominou e barbarizou a China, a Coreia, a Malásia, Cingapura, entre outros.

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Alguns dos fundamentos ideológicos que justificavam a agressão eram a superioridade da raça e do projeto civilizador japonês e a manutenção e viabilização da divindade do Imperador e do Japão tradicional, que seriam garantidos pelo progresso técnico. Alguns dos burocratas da educação e todos os militares dessa época eram antigos samurais. Eles trouxeram o Código do Guerreiro dos samurais (Bushido) para os quartéis e salas de aula de todo o Japão.

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“Nas escolas, todos os estudantes liam sobre os modos dos samurais, sobre Bushido (o draconiano código do samurai), sobre o ritual seppuku (ou harakiri, ritual suicida) (…) Durante o conflito no Pacífico, incontáveis discursos e registros mencionavam a dívida do guerreiro moderno ao Bushido. Escritos japoneses centenários aconselhavam a disciplina ao guerreiro, reduzido ao seu componente fundamental, a prontidão para a morte. A imagem do valente guerreiro feudal é apresentada no Hagakure, sem dúvida a mais influente obra samurai” (Axell e Kase)

Princípios como a fidelidade cega, a preservação da honra pessoal e o valor social do auto-sacrifício, entre outros que caracterizam os antigos samurais, passaram a nortear os sistemas educacional e militar do país. Obras de conduta e etiqueta samurai como o Hagakure (de Yamamoto Tsunemono) e o Livro dos Cinco Anéis (escrito por Miyamoto Musashi, sim, aquele de Vagabond) viraram cartilha moral dos japoneses nos períodos Meiji e Taisho.

Confundir o comportamento do guerreiro medieval com o que se espera de um cidadão no mundo moderno já não seria pouco equivocado, mas o problema foi mais sério. O estandarte do samurai escolhido não foi o do samurai histórico, foi o do samurai idealizado pela literatura.

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“Um fato crucial a se lembrar sobre o Bushido é que, a partir de 1615, o Japão tinha vivido em paz ininterrupta por mais de 250 anos (não existe paralelo na história mundial). Os samurais, frequentemente estereotipados como ‘ferozes guerreiros’, tornaram-se burocratas, enquanto, com suas canetas, registravam o caminho do samurai. Por causa do longo período de paz ininterrupta, o código do Bushido começou a ser registrado de modo idealista, metafísico e romântico”

Durante o período Tokugawa, o Japão passou por mais de dois séculos de paz interna e externa. Os Daimiyo (“senhores feudais”) e o Shogun gastavam amplos recursos para sustentar uma classe guerreira que simplesmente não tinha mais utilidade. O samurai, que vivia exclusivamente em função da guerra, entrou em crise existencial. Ele se preparava durante toda a vida para combates que não aconteciam. O samurai do período Tokugawa era um guerreiro Buzzatiano. Muitos viraram burocratas, poetas, filósofos, professores de artes marciais, comerciantes. Foi nessa época que alguns desses samurais sistematizaram no papel o código do guerreiro, louvando o valor do sacrifício, a beleza e a inefabilidade do perecimento, a preferência da morte honrada à rendição aviltante.

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Ou seja, muitos dos valores pelos quais reconhecemos os samurais, dentro e fora do Japão, são uma invenção (ou amplificação) intelectual do século XVII! O conceito de que o samurai, como classe, prefere a morte à fuga foi escrito e disseminado por samurais que nunca participaram de guerras e viviam da pena (ainda que existam casos reais anteriores, não era regra). O Hagakure, obra maior do Bushido, foi escrito oito décadas após a pacificação do Japão. Há vários registros históricos mais antigos de samurais que escreviam em suas memórias fugas despudoradas quando a situação era desfavorável, como afirma o historiador Thomas Conlan. A própria resistência japonesa à Primeira Invasão Mongol no século XIII contém episódios táticos de fuga samurai.

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O Bushido, de certa forma, foi criado mais pela pena que pela espada. Não digo que não existia um código moral oral anterior ou que atos radicais de sacrifício não existiram antes, estou falando que eles foram idealizados e amplificados quando transcritos no papel. Os samurais que vieram depois, no entanto, tomaram essa versão estética como uma constante histórica.

O “suicídio” planejado de samurais no Levante de Satsuma – a última grande rebelião samurai da história – é prova disso, quando eles avançaram de peito aberto e espadas em punho contra as armas modernas do ocidentalizado exército japonês, após passarem a noite escrevendo poesia sobre a moralidade e o encanto da morte honrada. Algo assim seria bem menos provável nos períodos Kamakura (1185-1333) ou Muromachi (1336-1573). Quando se luta por arroz, poder e terras férteis, e não por uma identidade em si, a morte é encarada como consequência inevitável do combate justo, não com desejo suicida.

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Outro detalhe, o Bushido foi sistematizado como um código que diferenciava os samurais do resto dos japoneses, quando as classes sociais foram estabelecidas por Toyotomi Hideyoshi (um dos três unificadores do Japão), numa condição hierárquica de superioridade. Samurais – cerca de 10% da população japonesa na época – tinham privilégios legais sobre os demais. O Exército e as escolas japonesas distorceram completamente o conceito já idealizado de um samurai e o generalizaram. Esperava-se um samurai de cada japonês. Foi um processo de absoluto doutrinamento que transformou o soldado japonês em um guerreiro medieval romantizado… o problema foi que esse soldado era real e portava armas modernas. O resultado é conhecido: kamikazes, Massacre de Nanquim, Unidade 731, recusa de Rendição mesmo quando já era sabido que a guerra estava perdida, sacrifício inútil de japoneses em áreas periféricas em relação à capital Tóquio (como Okinawa), e etc.

“A exploração do código do guerreiro ia de encontro ao seu objetivo original. O Exército Japonês moderno era composto basicamente por camponeses e mercadores, e o Código do Guerreiro sempre fora um meio de definir como os samurais se diferenciavam das outras classes. Durante a luta no Pacífico, a ênfase que o Código do Guerreiro dava ao auto-sacrifico revelava-se na falta de consideração dos soldados japoneses pela própria vida. Acreditando que a morte era melhor que a rendição, os soldados do Exército Imperial, em diversas batalhas, incluindo Guadalcanal e Iwo Jima, realizavam ataques suicidas quando a derrota tornava-se iminente. E havia os Kamikaze, pilotos que embarcavam em missões suicidas jogando os aviões contra navios Aliados. Usando o termo kamikaze, o vento divino que destruiu a Armada Mongol no século XIII, os pilotos modernos sentiam-se ligados a um passado glorioso.”

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É fácil constatar o resultado de uma educação militarista nas ações dos soldados em guerra, mas isso é menos evidente no comportamento dos civis japoneses que não lutaram diretamente no front, mas foram criados pela mesma mentalidade. É disso que se trata Hotaru no Haka. Seita matou Setsuko porque seguiu o Hagakure, e não a razoabilidade da situação. O fazendeiro de quem tentou comprar alimentos o orientou, “engula seu orgulho, peça desculpas à sua tia e reconheça que em tempos de guerra duas crianças nada podem fazer”. Seita teimou em carregar o fardo da criação de Setsuko nas próprias costas, orgulhosa e decididamente. Oras, foi o que lhe ensinou o Hagakure, a mais famosa cartilha samurai: “A pessoa não precisa de vitalidade nem de talento. Em suma, basta ter vontade de carregar sozinho sobre os ombros todo o clã”.

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A percepção dele da guerra era infantilizada e ingênua. Mesmo enquanto sofria as agruras e privações do conflito, antes de dormir ele imaginava o glorioso navio do pai, os fogos de artifício, a grandeza do Império Japonês. Nem por um momento ele parou para pensar nas conseqüências das agressões promovidas pelo pai militar, ou para reconhecer a difícil condição na qual se encontravam como resultado disso. E que simbolismo melhor para essa militarização da infância que um dos pôsteres do filme? A menina Setsuko, de quatro anos, batendo continência, simulando um capacete com um utensílio doméstico na cabeça e usando… fralda.

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Aqui retomo a metáfora dos vaga-lumes. Eles não referenciam apenas as bombas incendiárias americanas, mas a brevidade da vida das crianças no período. Vaga-lumes, que apenas por um breve período emprestam sua luminosidade ao mundo. Vaga-lumes que foram sepultados, na guerra ou nas cidades, por um fervor nacionalista, militarista e racista que felizmente foi derrotado, infelizmente ao custo de milhões de vidas inocentes (ou politicamente condicionadas).

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O último frame do filme é a cereja do bolo. Os espíritos dos irmãos estão sentados em um banco, cercados de vaga-lumes, enquanto olham ternamente para uma moderna metrópole japonesa. Próspera e pacífica. Como que para lembrar aos espectadores japoneses dos anos 80, o auge do progresso econômico do país, o preço que os antepassados pagaram por isso. Nos fundamentos de cada um desses prédios estão os túmulos de muitos vaga-lumes. Setsuko, Seita, o pai deles, as vítimas militares do pai deles, os filhos dessas vítimas espalhados pela Ásia e América. Isso não pode ser esquecido.


Fontes:
Som e sentido na lingüística dos kanji (Leonardo Boiko)
KAMIKAZE – Japan’s Suicide Gods (Albert Axell e Hideaki Kase)
Peace education through the animated film “Grave of the Fireflies” Physical, psychological, and structural violence of war (Daisuke Akimoto)
Transcending the victim’s history: Takahata Isao’s Grave of the Fireflies (Wendy Goldberg)
Grave of the Fireflies and Japan’s Memories of World War II  (Masako N. Racel)
Forming nationalistic mentality of Japanese youth by Japanese ruling circles with use of bushido ideology (Andrei Vasil’evich Golomsha)


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